Diário do Alentejo

Memórias à volta do copo

16 de abril 2024 - 12:00
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Texto Vanessa Schnitzer 

Caros leitores,

sirvo-me da minha mais recente expedição à capital como o veículo inspirador da crónica da semana. Por vezes, torna-se difícil arrancar alguma coisa, que valha a pena, da imaginação difícil, enquanto uma simples escapadela da janela rotineira tem a prodigiosa faculdade de exaltar o espírito e a imaginação como álcool na fogueira. E assim foi. Numa visita ao Museu de Lisboa fui surpreendida com uma exposição notável de fotografia: “Lisboa Frágil”, da autoria de Luís Pavão. Uma viagem por dentro, de uma Lisboa que já foi, e que é trazida até nós, de forma exemplar, pelo olhar perscrutador, que evita recorrer à banalidade e à demagogia. Através de uma procura paciente, apaixonada, do que vive por dentro as coisas: rasga horizontes insuspeitos, dá vida a personagens, que não são resquícios desaproveitados do dia, e que aguardam a visita da noite, para viver o auspicioso momento de existirem.

Pelo olhar do decifrador da vida regresso às várias memórias. Através desta viagem pela Lisboa popular, das tabernas, dos bares e cabarets, fez-me regressar às tabernas alentejanas onde se consumia o vinho do trabalho. Eram autênticos locais de culto, com uma identidade muito própria, que testemunharam os acontecimentos mais importantes e coloriam as ruas de figuras populares. Amiudadas vezes eram também um importante palco da inquietude e das discórdias que grassavam nos bairros, onde se podia sobreviver à norma. Por exemplo, minimizava-se o ato brutal de um homicida: “coitado, estava bêbado”, a “culpa foi de quem lhe deu o vinho a beber?!”.

De regresso à capital noturna, uma história partilhada pelo próprio Luís Pavão que teve lugar no bar, a oriental: “Alguém terá levado uma das suas fotografias à mulher de um dos homens que estava a dançar, e ela apareceu no sábado seguinte com o retrato à procura do marido. A mulher estava furiosa, e eles tiveram de deixar o marido sair pela porta das traseiras, com a mulher com quem ele estava a dançar na fotografia. Quando a mulher entra na sala do baile, o esposo já havia fugido pela porta das traseiras. Entretanto, no momento em que ela decide se ir embora, o próprio Luís tenta desculpar o marido: ‘Você tem que me dar razão, ele leva uma vida decente lá fora e escapa-se para aqui quando pode’”.

O retrato da capital invisível, extinta pelo terrorismo da turistificação, condenada pelos múltiplos poderes gestionários, apagaram a alma de um passado, que é possível revisitar como um segundo fôlego de vida, que nos é oferecido numa viagem profusamente ilustrada patente na exposição. O regresso a uma Lisboa que já foi, mas, ao mesmo tempo, sente-se um apelo para não deixar de ser.

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