Diário do Alentejo

A invisível estrutura do visível

03 de dezembro 2024 - 08:00
Uma coisa em forma de...
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula Figueira

 

Aquele lugar não se achava em nenhum mapa. Era uma cidade suspensa, uma espécie de Shangri-Lá, sustentada por pilares de pedra e embrulhada num nevoeiro raso, de um dourado antigo, profundo e envolvente. Naquela cidade viviam seres ímpares, invulgares, favorecidos pela graça dos pássaros: os Criativoadores.

Estes indivíduos, talhados pelos suspiros da brisa e pelos rugidos do vento, eram feitos de quimeras, de luz e de penumbra. O seu coração era uma chama visível, um fogo ardente, alimentado pelo “enthousiasmos”. Cada um deles tinha a sua centelha, única, sem igual, através da qual era possível configurar as coisas inexistentes. Eram conhecidos como os artificies do impossível, do impensável, transformando a ausência e a carência, na presença e na abundância.

Naquela cidade, as ideias eram flores que nasciam e desabrochavam, formando campos idênticos aos de tulipas na Holanda, principalmente na primavera. Sempre que os Criativoadores lhes mexiam, como que por milagre, elas passavam a exibir formas insólitas e surpreendentes. Todavia, este prodígio aportava um senão: quando expostas, as ideias, em forma de flores, tornavam-se vulneráveis, indefesas, entregues ao vento e, tal como os grãos de areia no deserto, as suas pétalas quando caíam eram arrastadas para longe. Durante o caminho, o seu fulgor tornava-se cada vez menor, extinguindo-se aos poucos…

Aquele local era amiúde visitado pelos Comimitativos, seres imitadores, feitos de ressonância e de reverberação, mestres na arte de copiar modelos e matrizes. Como eram incapazes de esculpir o âmago das coisas, usavam parte da sua energia a vigiar, de longe e por entre os sonhos, os Criativoadores, sempre atentos à queda das pétalas e, porventura, ao enfraquecimento das flores. Quando tal acontecia, aproximavam-se furtivamente, camuflados, escapulindo-se por entre as sombras, levando consigo as ideias e os pedaços que conseguiam reunir.

Um dia, o Criativoador Noa, depois de passar dias e noites, com carinho e dedicação, a modelar formas e contornos, concebeu uma ideia extraordinariamente bela. Esta possuía o brilho do mais puro diamante e reflectia todas as cores do arco-íris. Porém, um brevíssimo momento de desatenção possibilitou a aproximação de uma sombra, de um corpo estranho, que rapidamente usurpou a essência daquela composição, escapulindo-se de imediato e deixando, atrás de si, uma gargalhada de troça.

Aflito, sem que soubesse como lidar com o vazio que dele se apossara, Noa escolheu ir no encalço do larápio. Todavia, quanto mais se afastava da cidade, mais sinuosos se tornavam os caminhos; também o nevoeiro, cor de ouro, parecia oxidar-se, assumindo um tom paulatinamente mais cinzento, quase breu. A dada altura, Noa começou a sentir-se dentro de um labirinto, pleno de trilhos sombrios, sem saída aparente. Cada escolha descobria mais e mais alternativas, revelando-se inútil… Extenuado, parou de correr. Dobrou-se sobre si próprio, pôs as mãos nos joelhos e deu conta de que se havia perdido. Entretanto, a centelha no seu coração quase se extinguira…

Prestes a desistir, levantou a cabeça e viu algo absolutamente inesperado: um espelho a reflectir um raio luminoso que parecia querer tocar-lhe… Logo que o raio roçou o seu corpo, desagregou-o em pequenas partículas, sugando-as num ápice. Noa foi arrastado para uma dimensão em que os ponteiros do relógio andavam para trás, onde o futuro era o passado. À sua frente passavam imagens do ontem, do antes de ontem, da semana passada… uma sucessão de dejá vu… se bem que distendido, deformado, aparentemente gerado por máquinas com defeito. Apercebeu-se da presença de muitos, muitos Comimitativos. Aquele era o seu mundo particular, onde eles reproduziam as ideias roubadas, transformando-as em cópias baças, privadas da vida original. Curiosamente, movimentavam-se em círculo, criando um espectáculo similar ao ciclone das renas: circulavam em torno do mesmo ponto, com alguma rapidez e em uníssono. Noa demorou-se a olhar aquele quadro, sempre igual, igual, igual. A dada altura percebeu que os Comimitativos agiam assim por serem incapazes de conceber algo realmente original, transformador, sobrando-lhes apenas repetir, imitar, copiar, reproduzir.

Esta conclusão levou-o a entender que as ideias podiam ser roubadas, mas não a sua essência, o significado de ser um Criativoador. Ou aquilo que representava a centelha que flamejava no seu coração.

Nesse preciso momento cerrou os olhos para ver com a máxima clareza dentro de si. Bem no fundo da sua alma, descortinou uma pequena faísca que, veementemente, permanecia acesa. Com muita cautela, soprou-a, tendo conseguido reanimar o seu fogo da criação. De seguida, abriu os olhos. O sombrio labirinto era agora um local de beleza natural deslumbrante, com vegetação exuberante, águas cristalinas, areias brancas e uma atmosfera tranquila e relaxante. Naquele instante, Noa compreendeu que o seu verdadeiro talento não se confundia com qualquer ideia que pudesse conceber, mas antes consistia na sua capacidade de a reinventar, todas as vezes que o seu desejo o determinasse. Enquanto os Comimitativos acumulavam ressonâncias, os Criativoadores eram Fénix renascidas, retratos do eterno recomeçar, da sua essência preservada.

Por isso, decidiu esquecer aquela ideia que lhe tinha sido roubada. Afinal, cada derrota, cada insucesso representava, também, o princípio de uma outra qualquer coisa: enquanto os Criativoadores faziam acontecer o impossível, os Comimitativos, apesar da sua esperteza e avidez, nunca conseguiriam ser mais do que meros imitadores.

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