Diário do Alentejo

Os Diários de Lanzarote

07 de janeiro 2024 - 08:00
Domingo, 1 de outubro de 2023
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto | João de Carvalho

 

O sétimo dia de viagem coincidiu com o mesmo sétimo dia em que, depois de seis dias a criar o universo, Deus decidiu descansar: domingo. Apesar de sentir-me legitimado a descansar nesse dia, não o fiz. Subi a Montaña Blanca. Por consequência de tê-la subido, também a desci. Há atos que nos levam automaticamente a outros, fazendo-nos engolir o desígnio da causalidade. Hesitei na subida da montanha. Quando cheguei a metade, olhei para trás e reparei como a realidade se dispunha íngreme abaixo de mim. De cada vez que mirava o já distante vale da montanha, sentia o meu corpo encher-se de tremores e ansiedades. Depois de muito calcular, parado a meio de uma, na minha perspetiva, subida de montanha, decidi ir até ao fim. Se o velho septuagenário conseguiu, também eu, jovem e ágil, haveria de conseguir. Assim foi. O sucesso tem às vezes que ver com persistência. Mas o velho dos “Cadernos de Lanzarote” tinha razão. A descida é muito mais exigente que a subida. É na descida que um homem aprende que nem nas pedras pode confiar. Algumas revelam-se falsas. Vai um homem confiar-lhes todo o peso, apoiando nelas os pés, e elas desprendem-se do solo, resvalando montanha abaixo, num caminho interminável. Apesar da falsidade das ditas pedras, cheguei ao sopé são e salvo. Desde o sopé, olhei orgulhosamente a alta Montaña Blanca. Lembrei-me de José Saramago dizer que aquela montanha era o seu Evereste. E sorri. Sorri diante da realidade de tornar-me num dos pares de Saramago: havia subido o seu Evereste. Preenchi-me de romantismo perante tamanha banalidade. Naquele momento, liguei à minha mãe a contar-lhe. Cheio de entusiasmo, exclamei ao telemóvel: “Subi a Montaña Blanca!”.

“Subi a Montaña Blanca. O alpinista do conto tinha razão: não há nenhum motivo sério para subir às montanhas, salvo o facto de elas estarem ali. (…) A descida, feita pela parte da montanha que dá para San Bartolomé, foi trabalhosa, bem mais perigosa do que a subida, pois o risco de resvalar era constante. (…) Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: «Se caio e aqui me mato, acabou-se, não farei mais livros.» Não liguei ao aviso. A única coisa realmente importante que tinha para fazer naquele momento era chegar lá acima.”

- “Cadernos de Lanzarote”, José Saramago

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