Diário do Alentejo

Os Diário de Lanzarote: Sexta-feira, 29 de setembro de 2023

22 de dezembro 2023 - 21:00
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Texto João de Carvalho

Ao quinto dia de viagem, enquanto conduzia o carro do Nobel pela manhãzinha, dei conta de estar a raciocinar em castelhano. Ora, isto é, no mínimo estranho, tendo em conta que não sei falar castelhano. Sim, há um português que não sabe falar a língua do país vizinho, mas, por certo, haverá mais que um. É que vai uma distância significativa entre o desenrascar portunhol e o falar castelhano corretamente.

Diante de pensamentos mesclados entre o idioma português e o castelhano, cheguei aos Jameos del Agua. Lembro-me de comprar o bilhete e de agradecer com um gracias efusivo. Afinal, apesar do desconhecimento da língua, esforçava-me! Aquele gracias ficou a ecoar-me na mente durante toda a visita ao interior dos Jameos del Agua. Na altura, já sabia que aquela atração turística resultara de um tubo de lava que subira, formando uma extensa cavidade vulcânica. E para tratar de cavidades vulcânicas está César Manrique convocado. Foi ele o arquiteto que adaptou o local. Fê-lo com categoria: juntou-se à obra de arte que lhe foi concedida pela natureza e realizou, a partir daí, um trabalho artístico notável. Não precisando de um toque de Midas, pois a natureza já se apresenta soberba, foi esse toque que César Manrique atribuiu a todas as cavidades vulcânicas por si arquitetadas. Depois de demorar-me no interior dos Jameos, soltei mais um gracias quando, num ato impulsivo, pedi a um turista que me tirasse uma foto, antes de encaminhar-me de volta ao carro. A foto ficou uma merda, mas muito por culpa própria, já que a minha cara se desfez tímida e corada diante do meu telemóvel nas mãos de um estranho turista.

Já que estava no norte da ilha, aproveitei para visitar o Mirador del Río, local também arquitetado por César Manrique. Por sugestão do Iñigo, não paguei bilhete para entrar. Disse-me que não se justificava, que a vista de fora do miradouro era suficiente para apreciar as paisagens. Não posso ter a certeza da razão do Iñigo, mas sei que sim, a vista de fora do Mirador mostrou-se deslumbrante. Observam-se os traços de La Graciosa na perfeição, uma ilha vizinha de Lanzarote. Além da paisagem natural, encontram-se também alguns turistas ecológicos, equipados para longas caminhadas e para escalar montanhas. São doidos – pensei em bom português, enquanto senti um ranger de fome no estômago. Tenho a certeza de que para aqueles desportistas os doidos são os que sobem montanhas a conduzir carros. A doidice é relativa. Mas a fome não! Sem comida, decidi dirigir-me a Casa. Mas antes, e outra vez aproveitando o facto de me encontrar no norte de Lanzarote, passei por Haría. A localidade situa-se entre montanhas, dando a ideia de que se encontra numa cova. Foi em Haría que José Saramago (e agora transcrevo uma passagem da obra “A Intuição da Ilha”) “(…) percebeu que os comportamentos das pessoas não dependem do lugar onde vivem, mas do aprendido quem sabe onde. Num restaurante da povoação, ofereceram-lhe carne para comer. José Saramago perguntou por um prato de peixe e a resposta foi taxativa: «Homem, o melhor peixe é na costa. Aqui, no interior, o melhor é o cabrito ou o coelho.» Haría está a três quilómetros do mar. Lembrando-me desta pequena história anedótica, observei as altas palmeiras da localidade. O calor e o deserto da região agudizavam a minha fraqueza que se estendia, aos tremeliques, às minhas pernas. Precavendo-me de um eventual desmaio, conduzi até Casa. Nessa travessia, passei ao lado da Montaña Blanca, aquela que José Saramago ousou subir a 9 de maio de 1993. Era já um septuagenário. Olhei-a sonhador, à procura de José, mas, em rápidos vislumbres lançados ao longo da Montaña, não o encontrei ali. Talvez esteja em Casa – pensei. Mas espantei-me, nem em Casa estava! Depois deste choque com a realidade, decidi relaxar. Apesar de não ser um dia propício ao descanso (segundo a Bíblia), descansei. Às vezes, nada mais há a fazer do que descansar.

Durante essa tarde, mergulhei e nadei na piscina de José Saramago, antes de receber um telefonema do Juanjo. Convidou-me para um concerto gratuito em Arrecife. Aceitei. Depois de jantar uma pizza de atum, pedida no exato local onde no dia anterior me enganara no pedido, fui ver um concerto com o Juanjo, a Marta e algumas das suas amigas. A música do concerto estava alta, mas pouco interessava. Falei, muitas vezes aos gritos ou a falar ao ouvido, de política e literatura com o Juanjo. Contou-me duas curiosidades banais que me impressionaram muitíssimo. O fim da obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi escrito na Ericeira, essa vila pela qual nutro tanto carinho. E ao falar de literatura francesa e expressar a minha admiração por Camus, o querido Juanjo disse-me que foi José Saramago quem lhe aconselhou a leitura do livro “O Estrangeiro”. Banalidades destas prendem-me ao sentimento supremo e único do prazer de estar vivo. Há nas banalidades um certo romantismo que me ultrapassa. Assim, exultado por trivialidades, voltei a casa. Procurei por Gregor Samsa, mas não o vi. Antes de acomodar-me na cama, atualizei-me: o Benfica tinha ganho ao Porto por 1-0. O Sporting podia subir ao primeiro lugar no dia seguinte. A sorrir, adormeci no verde dessa esperança.

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