Diário do Alentejo

Os Diários de Lanzarote

15 de dezembro 2023 - 10:40
Quinta-feira, 28 de setembro de 2023
Foto | D.R.Foto | D.R.

Ao chegar a casa na noite anterior, depois de ter ido jantar com o Juanjo e a sua companheira Marta, deparei-me com uma barata no meio do chão da cozinha. Estaquei os meus passos que se dirigiam ao quarto e fitei-a. A barata fez o mesmo, deteve os seus movimentos e atuou como um homem estátua. Talvez, na sua inteligência animalesca, a barata pensasse que parar os movimentos significasse algo como esconder-se. Mas não, o amplo chão branco da cozinha não funcionara como esconderijo. Os segundos em que ambos estivemos imobilizados demoraram uma eternidade. Foi no momento em que decidi reativar os meus movimentos que a barata também se mexeu, começando a andar muito rapidamente, na procura de um verdadeiro refúgio. Na iminência de levar uma sapatada, a inteligente barata fugiu-se-me da vista, metendo-se atrás de móveis que não ousei deslocar. Ora, não conseguindo matar a barata, ao menos afugentei-a. Mas de que valeu afugentar a intrusa se a mesma continuou dentro de casa? Bem, já não estava sozinho. Partilhava a cave da Casa de Saramago e já havia batizado aquela companheira. De apelido, Samsa. De nome próprio, Gregor. Sim, Gregor Samsa pode ser considerado nome de homem e a barata talvez fosse mulher… e depois? Se acham isto desconcertante, talvez precisem de rever as vossas convenções. Dormi sobressaltado sob a presença de uma nova companheira de casa e acordei com uma ansiedade mesquinha e fininha a zumbir-me no peito. Mas entenda-se que tal estado ansioso não se devia apenas à presença de Gregor Samsa. Tudo contribuía; desde o viajar pela primeira vez sozinho a todos os privilégios que me concediam. Ainda assim, levantei-me decidido a ir explorar a ilha. Uma das principais coisas que uma pessoa faz quando está de férias é passear pelos caminhos da observação e da novidade, caindo para dentro de tudo. Mas quando se está alojado na Casa de um dos nomes fortes da literatura mundial, a vontade não se fixa em passeios e distrações. Todas as paredes da Casa se mostraram interessantes e mereceram a maior atenção. Apresentando-se só como paredes, talvez não fossem só paredes, mas sim algo mais. Toda a ilha de Lanzarote está como que tocada por José Saramago, e isso sente-se, mas a Casa foi um sítio no qual senti poder ficar uma eternidade nunca aborrecida. Apesar desta vontade de ficar em Casa, mantive-me fiel aos planos: fui passear!

Ao sair para a rua, cruzei-me com o Iñigo, jardineiro da Casa. Depois de uma conversa bilingue – um falava em espanhol e o outro replicava em português –, o Iñigo encaminhou-se até ao carro. Abriu-lhe o capot e descansou-me. Tiene agua – disse-me. Viajei então, numa roadtrip épica, até ao Parque Nacional de Timanfaya. Chegado, depois de enfrentar uma longa fila de carros, visitei o Parque através da única forma de o fazer: meter-me dentro de um autocarro que apresenta aos visitantes um percurso pelos caminhos vulcânicos do Parque. Durante essa excursão de meia hora, ocorreu-me várias vezes, enquanto observava a negra paisagem e ouvia o motorista do autocarro que fazia também as vezes de guia, uma pergunta: onde andará o Gregor Samsa? E respondia-me automaticamente: não sei, mas espero não voltar a vê-lo durante a minha estadia. De repente, quando o autocarro parou no meio de um alto corredor de lava seca, local onde o motorista procedeu em explicações e curiosidades, o meu estado de espírito desfez-se negro como o espetro de sombra que se abatia sobre o autocarro. Havia-me esquecido de fechar a porta do quarto. O caminho estava livre. De rosto sério, dentro de um autocarro cheio de turistas que vociferavam conversas entusiasmadas nas mais variadas línguas, desejei a morte a Gregor Samsa.

No caminho de retorno a Casa, passei por La Geria, um dos sítios referenciados no livro “A Intuição da Ilha”, escrito por Pilar Del Río. Tal livro pretende dar a conhecer os dias de José Saramago em Lanzarote, mas, e por mim falo, é muito mais do que isso. É um autêntico guia da ilha de Lanzarote. E o melhor guia, o melhor mapa! Tem sempre, debaixo de olho, os recantos que José Saramago pisou. Não parei em La Geria, a pequena localidade dada ao vinho. Com o carro sempre em movimento, espantei-me diante da paisagem das vinhas plantadas numa terra de lava. O escuro da lava a contrastar com o claro verde das vinhas. Cada vinha plantada isoladamente, e cada qual meio rodeada por um conjunto de pedras a formar meias-luas, estratégia arranjada tendo em vista a preservação das vinhas, pois o vento norte é muito forte na região.

Quando dei por mim, havia deixado La Geria para trás e estava defronte da Casa. Depois de entrar-lhe, não me lembrei de Gregor Samsa. Deitei-me na cama a observar as paredes por uns breves trinta minutos. Quando me levantei, decidi ir sentar-me na cadeira disposta no centro do quintal. Naquele centro do universo, saí de mim. A companhia da pedra revelava-se transcendente. Quando me regressei, haviam passado duas horas e não tinha feito nada mais do que estar sentado. O relógio sem ponteiros do meu telemóvel marcava a hora de jantar. Fui a um restaurante e pedi uma pizza, mas enganei-me. No momento em que a pizza chegou à mesa – que foi o mesmo momento em que reparei no erro – não tive coragem de mandá-la para trás. Queria uma pizza de atum, mas pedi mal. No olhar apressado que lancei à ementa, troquei o nome às pizzas. A pizza de atum deveria chamar-se pizza de atum, para que enganos destes não sucedessem. Assim, serviram um homem que não come carne com uma escaldante pizza de pepperoni. Meti os pepperonis de lado e comi o resto da pizza. Ao deixar o prato vazio de massa e cheio de pepperoni, fui, com certeza, acusado de demência pelo pobre empregado do restaurante. Ainda assim, paguei e saí como se nada fosse. Ao sair, reparei que a noite já era noite, que a noite de Lanzarote era igual à de Lisboa: escura. Hei de encontrar uma noite de céu azul – disse em voz alta, ao mesmo tempo que palitava os dentes com a língua.

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