Diário do Alentejo

Os Diários de Lanzarote

30 de novembro 2023 - 15:35
Terça-feira, 26 de setembro de 2023
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto | João de Carvalho 

 

Acordei humildemente na Casa do Nobel José Saramago e, antes de ir ter com o Juanjo para uma visita guiada pela Casa e pela Biblioteca, reparei pormenorizadamente nos detalhes da sala disposta na cave. A um canto, dois gira--discos e alguns respetivos discos vinil de José Saramago. Com autorização prévia, ajoelhei-me de forma a nivelar-me com os discos, e vasculhei-os. Alguns, um do fadista Carlos do Carmo, sobem de valor pelas dedicatórias inscritas: “Para a Pilar e para o Zé (…)”, seguindo-se o resto da dedicatória de uma letra impercetível. Num erguer-me brusco e mal calculado, senti uma tontura daquelas que dá a quem se levanta repentinamente. Ora, joguei-me para cima do sofá e senti-me a recuperar a estabilidade da visão lentamente. Sentado, com os sentidos da vista recuperados, olhei alguns prémios de José Saramago dispostos sobre uma estante, mas não foi sobre eles que estacou a minha deslumbrada visão. Sobre essa mesma estante, vi quatro fotos da Pilar quando em idade muito jovem. Ao olhá-las, uma a uma, creio ter tido a sensação de ver uma divindade. Senti-me preenchido por uma beatitude virtuosa, originada pelo vislumbre de uma mulher cujos traços faciais me relembraram a minha bela mãe, também nos seus tempos de juventude. E tal como sucedera há momentos, tive de atirar-me novamente para o sofá, de forma a recuperar os sentidos. Quando me recompus, saí de Casa e fui ter com o Juanjo ao exterior. Era tempo da visita guiada, mas havia um problema: estava em jejum desde as sete da tarde do dia anterior.

Sobrevivi àquelas tonturas de fraqueza e no resto do dia não fiz muito mais. Deixei-me estar em Casa, sentado diante da minha ansiedade. Esta, quando oriunda de boas sensações e vivências, também consegue ser bastante debilitante e exaustiva. Vi trechos do filme “José e Pilar”. Transportado pelo filme, sentei-me em silêncio em alguns dos sítios onde José Saramago havia sido filmado e partilhado momentos de cumplicidade com os seus, nomeadamente na sua piscina interior. O silêncio de um homem de palavras é aterrador, mesmo quando nos diz que tudo está bem. Na liberdade de vaguear pelo amplo quintal, intercalei a minha presença entre a piscina e uma cadeira disposta no centro do quintal, perto de uma vulcânica pedra negra de imenso valor sentimental para José Saramago. Entre sentares e levantares, cercado pelos ecos silenciosos da terra, atingi uma certeza absoluta: ainda sem conhecer a ilha de Lanzarote, havia descoberto o seu mais prazeroso fruto: permanecer sentado no centro do quintal, o exato sítio do universo onde José Saramago se sentava e olhava a terra de Fuerteventura e o mar, afirmando para si próprio que sim, que a humanidade deve prevalecer sobre a maldade, enfim, que a humanidade e o mundo têm um remédio.

Passaram-se assim, numa quietude ansiosa, as largas horas da tarde, e seguiu-se depois, no restaurante “Arepera Bar Millo y Millo”, um jantar com o Juanjo, o melhor anfitrião da ilha de Lanzarote.

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