Diário do Alentejo

Será que o escalo do Mira se extinguiu para sempre?

27 de novembro 2023 - 09:47
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Texto| José Valente, professor

O escalo do Mira é um peixe de água-doce que pode atingir 16 centímetros de comprimento. É, pois, um peixe relativamente pequeno. O seu nome científico é Squalius torgalensis. Este peixe só existe em Portugal, não se encontrando em mais nenhum lugar do mundo. Habita a bacia hidrográfica do rio Mira na região onde se situa Vila Nova de Milfontes, fazendo parte da Costa Vicentina.

Há poucos anos estimava-se que existissem poucos milhares de indivíduos. A espécie foi drasticamente reduzida nos últimos anos. Apesar de conseguir pôr 2000 ovos, tal não chega para a população crescer devido à má qualidade da água que tem vindo a piorar e à existência de espécies exógenas prejudiciais. As alterações climáticas têm vindo a piorar a situação da conservação da espécie. Agora surge a notícia de que a espécie pode ter sofrido a sua extinção. E o seu desaparecimento em Portugal, na região referida, significa que se extinguiria a nível mundial porque é o único lugar que habita ou habitava.

Para esclarecer este grave problema da biodiversidade, o “Diário do Alentejo” entrevistou um dos responsáveis nacionais da associação ambiental ZERO, José Paulo Martins.

 

O escalo do Mira habita ou habitou exclusivamente uma zona do rio Mira? Qual é essa zona?Podemos dizer que é uma espécie da bacia hidrográfica do rio Mira. No entanto, é na bacia da ribeira do Torgal que este peixe era conhecido e onde se tinham até realizado ações de repovoamento.

     Porque é que a associação ZERO alertou para a possibilidade de o peixe estar extinto?Em visita recente à ribeira de Torgal foi possível constatar que os pegos ao longo da linha de água secaram em toda a extensão até ao pego das Pias (único local com água), na área de ocorrência conhecida.

 

Há alguma probabilidade de haver peixes sobreviventes?Há uma última esperança de que alguns exemplares da espécie possam ter sobrevivido no pego das Pias, ainda que neste local abundem espécies exóticas invasoras e predadoras deste peixe, como o lagostim-vermelho-da Louisiana (Procambarus clarkii), a perca-sol (Lepomis gibbosus) ou o temível predador achigã (Micropterus salmoides).

 

A dificuldade de sobrevivência para esta espécie já era conhecida?O facto de ter uma área de distribuição geográfica restrita e de a mesma corresponder a uma bacia hidrográfica sujeita a uma situação de escassez hídrica evidente nos últimos anos eram indicadores de risco para esta espécie.

 

O Governo e as entidades competentes já tinham sido avisados?Da nossa parte o alerta partiu neste momento, por virtude da situação que encontramos no terreno, mas, perante as características e situação de seca que se vive naquela região, não deveriam ser necessários avisos.

 

Houve nos meios de comunicação notícias sobre o problema desde há anos?A questão dos nossos peixes endémicos (existem várias espécies em Portugal) tem sido alvo de informação pública nos últimos anos em termos gerais, mas desconhecemos que nos últimos tempos tenha havido notícias específicas sobre este caso em particular.

 

Este cenário era esperado?Tal como referi, face às condições de distribuição restrita da espécie e à seca que aí se vive, seria uma situação expectável e potencial.

 

O que se fez para evitar a possível extinção do peixe?No passado já houve reprodução ex situ desta espécie e reintrodução de indivíduos para reforço das populações o que, entretanto, deixou de acontecer e, ao que sabemos, já não há agora qualquer população em cativeiro. Também houve intervenção na própria ribeira do Torgal, nas margens e leito, com vista à melhoria do habitat, onde se utilizaram técnicas de engenharia natural para criar melhores condições de reprodução e  permanência para esta e outras espécies aí existentes, nomeadamente, os mexilhões de rio. Falhou aqui o Estado, nomeadamente, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), em termos de monitorização desta situação.

 

O Governo e outras entidades são culpados do problema porque poderiam ter feito mais na prevenção?Estando esta área dentro dos limites do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, e sendo ainda em área classificada da rede Natura 2000, compete ao ICNF o acompanhamento da situação. Falhou-se na ausência de um programa de monitorização sistemática dos valores naturais ameaçados que fosse independente da boa vontade de alguns investigadores.

 Há outras espécies no Alentejo em vias de extinção?Temos várias espécies com estatuto de conservação vulnerável e em perigo, seja à escala regional ou nacional. Recordo apenas a planta Linaria ricardoi, endemismo que só existe na região de Beja e envolvente, e uma outra planta dos gabros de Beja, a Onosma triceroesperma. A conservação dos valores naturais na nossa região passa pelo conhecimento, que felizmente tem sido muito incrementado nos últimos anos, mas também por ações concretas de conservação e monitorização. Um caso flagrante e presente em que podemos vir a perder uma das áreas muito importante para a conservação da natureza é a que diz respeito ao projeto de instalação de uma central solar fotovoltaica na serra do Paço, no limite entre Ferreira do Alentejo e Beja, onde existe uma das mais ricas floras do Baixo Alentejo, mercê das características do local, assente nos solos básicos derivados dos gabros de Beja.

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