Texto João de Carvalho
AGRADECIMENTOS
Vivi, durante uma semana, no conforto privilegiado da Casa de José Saramago, em Lanzarote. Assim, há que, antes de passar ao registo diarístico desses meus dias em Lanzarote, proceder aos devidos agradecimentos. Ainda cheio de incredulidade e com o coração preenchido por doces sensações, dirijo os meus agradecimentos a pessoas que nunca pensei vir a agradecer publicamente, nem tão-pouco, sequer, chegar a conhecer. Agradeço infinitamente a Pilar Del Río e Miguel Gonçalves Mendes, por terem tratado desta viagem com tanta consideração e carinho. Agradeço também a Juanjo, filho de Pilar, que tão bem me recebeu na ilha de Lanzarote, partilhando comigo jantares e apresentando-me com tanto entusiasmo e orgulho o universo de José Saramago. Aproveito ainda para expressar a minha gratidão para com as pessoas que trabalham na Casa e que, tal como o Juanjo, tão bem me acolheram. Com a total certeza de que esta minha vontade se cumprirá, desejo que todas as pessoas acima citadas continuem a preservar tão bem o legado de José Saramago. E, por último, José Saramago. Foi um prazer partilhar consigo a sua própria Casa, assim como a terra pela qual desenvolveu tanta afeição. É um prazer, depois de experienciá-lo no limite máximo do possível, sentir, hoje, poder tratá-lo por amigo. Obrigado, caro amigo José Saramago.
Nota: O diário de uma viagem não consiste apenas no relato do roteiro cronológico dos acontecimentos. Tal restrição não seria justa para o viajante, nem tão-pouco para a viagem em si. É preciso que o narrador não se cinja a esse roteiro de acontecimentos do quotidiano
Assim, este narrador viajante não vai apenas contar-vos de que é feita a ilha de Lanzarote, vai também apoiar-se em vós, leitores, confidenciando-vos sentimentos pessoais: os prazeres, os tédios e os medos da viagem.
Segunda-feira, 2 de outubro de 2023
Aos poucos, regressava-me eu a mim, à minha existência, à minha realidade. É este o regresso que todos os viajantes fazem quando se dá por terminada uma viagem. Amanheceu como em todos os outros dias. E eu, ao contrário do que faço em todas as outras manhãs, corri. Sou um homem doente, caro Dostoiévski, mas, naquele momento, não havia tempo para pensar nisso. Às vezes, a resolução dos problemas está em não pensar, mas, nesses casos, não se trata de resolução nenhuma. Ignorar as coisas não é resolvê-las. Sou um semelhante de Dostoiévski na sua doença: o atormento de pensar. Mas repito, não havia tempo para ócios reflexivos, pelo que era tempo de correr. Corri à procura de lojas de souvenirs. No meio do vento fresco e do suor do sol, com o cabelo empapado nos sais esvoaçantes do mar de Lanzarote, encontrei umas quantas lojas que me agradaram. Como podia eu deixar os souvenirs para o último dia? É sempre um risco. Mas bem, safei-me. Comprei inutilidades que se colam aos frigoríficos, sacos de pano, porta-chaves, observei os livros de Saramago nas lojas de souvenirs (coisa que, confesso, achei estranhíssima) e, por fim, já depois de sair da loja, lembrei-me. O molho verde que o Miguel me pediu! – exclamei num ai de desespero. Tal desespero foi rapidamente resolvido, bastou-me voltar atrás e entrar novamente na loja. Comprei o molho verde. Já tinha tudo. A pressa e a distração do que era preciso fazer extinguiram-se, pelo que podia novamente focar-me em mim, na minha doença.
Voltei a Casa e sentei-me junto à pedra disposta no centro do quintal de Saramago. Lembro-me de haver sublinhado uma passagem que me marcou e que, por isso, utilizarei como a epígrafe destes diários: “Não estou, como ela, desesperado, porque nunca tinha esperado grande coisa. Estou é… espantado diante desta vida que me é dada… dada para nada. (…) E este instante, de que não posso sair, que me encerra e me limita por todos os lados, este instante de que sou feito, não será mais que um sonho indistinto.” O Sartre fora tão doente quanto nós, Dostoiévski! Sofria de náuseas.