A segunda edição da Feira do Livro – Solstício das Palavras, realizada em Beja, já terminou. Tive a sorte e a oportunidade de, no seu âmbito, fazer a divulgação de dois livros cuja autoria partilho com António Bagão Félix.
Neste tipo de sessões, seja em público ou em privado, surgem habitualmente algumas questões. Apesar de recorrentes e de já me ter pronunciado, em diversos fóruns, sobre as mesmas, continuo a entender que vale a pena revisitá-las (algumas delas, ao menos), sempre na esperança de conseguir acrescentar mais informação que possa ser útil (quem sabe?), em particular, a quem pretende iniciar-se nestas andanças.
Escrever, porquê? Quando escrevo estou acompanhada e tenho a possibilidade de vir a ser uma companhia para alguém. Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, enfatiza que “Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?”. Por outro lado, a “solidão” que também hoje tanto se impõe, compelindo-nos a acreditar especialmente em nós próprios, assim como no dinheiro e nos direitos que cada um pode adquirir ou adquiriu, dificulta a alimentação da alma, onde aquela luz que provém das experiências oriundas do colectivo “desinteressado” é determinante. Ora, a escrita é um pretexto, é um estratagema, é uma forma de contornar esse prejuízo.
Não me parece que quem não leia bastante e com frequência possa pensar em dedicar-se à escrita. Mesmo que o faça apenas no seu tempo livre, por prazer e por divertimento, tal como eu. Há quem diga que hoje existem mais “escritores” do que leitores e que a facilidade para ser editado é cada vez maior. Não sei se será exactamente assim. Mas sempre que este assunto é mencionado, a minha mente relembra-me o analfabetismo funcional, relacionado com a dificuldade de compreensão de textos, muito embora o indivíduo seja tecnicamente alfabetizado. Por onde andará então o “só sei que nada sei” do filósofo grego Sócrates? Em contraponto, recordo ter ouvido num programa de televisão em que a convidada era a actriz Maria do Céu Guerra que, em Portugal, no sector cultural na generalidade, trabalha-se de uma forma autofágica, ou seja, o teatro para o teatro, a música para a música… e depois existe o resto: material de consumo imediato. Atrevia-me também a incluir aqui os livros: são, na maior parte das vezes, os mesmos a escreverem para os mesmos, a premiarem-se e a promoverem-se uns aos outros. E depois existe o resto, onde acredito que nem tudo é de consumo imediato, mas onde aquilo que não o é, será dificilmente diferenciado. Porquê? Pelo facto de estar fora do “rótulo”, do sistema e, como tal, carecer de um olhar atento e particular. O que é, actualmente e por variadas razões, cada vez mais escasso. Já Herman Hesse dizia que não via lobos de estepe…
Quanto à escrita propriamente dita: Milton Hatoum, o escritor brasileiro de origem libanesa, afirmou que “o grande desafio do escritor é transformar a sua experiência em linguagem”. Sim, … “Todos nós temos efectivamente uma experiência, que pode ser mais ou menos rica, mais livresca, que pode ser uma experiência de leitura, de vida, aventureira ou não. A questão da literatura é como isto se transforma em linguagem. A imaginação, que é o que para mim dá força à literatura, tem de traduzir esta experiência. O valor da arte está ligado à força da imaginação”. E, neste seguimento, “o autor inventa a vida”.
Alguns leitores questionam-me se o que está no livro aconteceu ou não aconteceu. Julgo que o façam motivados pela curiosidade, pela vontade de descobrir qual é o método utilizado e que deu origem àquele produto final. Tal como o que acontece com os truques de magia, quando o método se explica, perde o encanto. Ou seja, o desafio é imaginar enquanto se está a ler. Saber onde está, no meu caso, a Ana Paula, e onde deixa de estar, não tem interesse. Pelo simples facto de que o que importa é o que se está a ler e não a pessoa que escreveu; corroboro aqui aquela “incerteza boa” que, enquanto cineasta e quando se referia aos espectadores, Hitchcock preconizava: “Play them like an organ”!
Quanto à estética e quanto aos temas, volto a socorrer-me das palavras de outro grande escritor, desta vez do argentino Jorge Luís Borges. Este defende que, na literatura, “o estético é o lugar do enigma. O que é fascinante na literatura é justamente esta possibilidade de inventar aquilo que poderia ter existido ou aquilo que pode existir. O enigma que nunca é decifrado irradia possibilidades de leitura e de interpretação. Esta é a verdade da literatura, é a verdade das relações humanas, não é uma verdade científica nem uma verdade de respostas definitivas. Ao contrário, ela coloca questões o tempo todo”. Procuro privilegiar aqueles temas cujo tratamento entendo como um possível contributo para colmatar necessidades e falhas que identifico, individual e socialmente; recorro a exemplos de vida, baseados em pessoas que conheço ou conheci – chego até, e às vezes, à caricatura –, exemplos que retratam uma perspectiva ou uma visão do problema e que julgo que pode ajudar – a quem lê – a pensar, a reflectir a propósito do mesmo. Se o leitor concorda ou não, se ele se identifica ou não, se… Essa é, como já disse, uma das grandes valências da escrita: deixar ao leitor a possibilidade de fazer perguntas que resultem da “sua” (no caso do público infantil é relevante a ajuda de um mediador) própria leitura. Ainda, e especialmente no caso do público infantil, o maior desafio diria que é, por um lado, não “cair” na “fácil moralidade”, mas conseguir construir exemplos íntegros, justos e honestos sem “cair” numa platitude lamechas, privilegiando demonstrar a pureza, a diafanidade (e não a banalidade) do humanismo do Bem.
Li há quatro ou cinco anos uma crítica feroz a Miguel Torga (que classificava a escrita Torguiana precursora de um), “género de humanista narcisista que explora a personalidade, glorificando-a”. Classificava ainda o escritor como um ser cosmogónico, do tempo da criação do mundo e os seus Diários, de um solipsismo que não é moderno. Pois bem, e apesar de eu ser apenas uma autora, revejo-me em muito daquilo que a crítica vê de menos bom em Torga.