Diário do Alentejo

Crónica de Florival Baiôa: "Aos que estão e aos que já foram, com os alemães à mistura"

14 de julho 2023 - 16:00
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Alguém se lembra que os alemães estiveram por cá e por aqui ficaram de 1960 até 1993? Depois dos processos legais e discussões sobre as missões militares a levar a efeito, lá se assinaram os contratos e, seis anos mais tarde, apareceu o primeiro contingente militar. Tirando os trabalhadores portugueses que estavam na Base Aérea de Beja, a maioria da população desconhecia o que se estava a passar, nem o que iria acontecer com a vinda destes estrangeiros. Mesmo depois do fim dos contratos, muitos eram os alemães que regressavam a esta cidade, acabando mesmo alguns por aqui adquirir as suas habitações, onde ainda permanecem.

 

 

Devem ter gostado de cá estar, pois na Alemanha formaram uma associação denominada Os Bejanas. O meu amigo Francisco Serafim fez-me lembrar esses tempos, enviando-me um velho artigo do Carlos Dias, publicado, em 2014, no “Público”, indo buscar informações ao livro Política Externa Portuguesa – Dez anos de relações luso-alemãs – 1958/1968, de Ana Mónica Fonseca, em que se explica “como a localização estratégica da planície alentejana, ‘longe de um possível teatro de guerra’, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar ‘como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos’ no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha”.  Pensaram os alemães que esta cidade poderia e deveria crescer nos anos seguintes, mas tal nunca viria a acontecer, por pressões dos governos portugueses e de certa camada da população. Contavam eles poder ter na cidade mais de 5250 pessoas, entre oficiais, soldados e funcionários, mais as suas famílias.

 

Da parte portuguesa teria cerca de 3000 funcionários, com trabalhos nas linhas de voo, manutenção e reparação. Para toda esta gente construiu-se o célebre bairro Alemão de Beja, com 1500 fogos. Previa-se que Beja atingisse, em 1970, uma população de 29 000 pessoas e que nos anos Oitenta chegasse às 50 000, quando, em 1960, os censos informaram que Beja tinha 15 702 habitantes. Números que nunca se realizaram, por condicionalismos vários. Até que chegou o corte definitivo, creio que parcialmente causado por restrições com o campo de tiro de Alcochete.

 

Com a vinda dos alemães para Beja, um dos fatores que perturbou a sociedade local foi o aumento do custo de vida e o salário mais elevado para quem trabalhava na base aérea. Talvez por estas razões escreveram os mais ricos da cidade um abaixo-assinado, dirigido à Comissão Luso-Alemã, para que fosse interdito o salário de 1500 escudos, considerado muito alto, muito superior aos 300 escudos a que estavam habituados, e agravando, como eles diziam, a “ordem económica”. Isso é que era bom, respondeu a comissão, e os alemães continuaram a pagar bem melhor do que os portugueses ricos de Beja. Mas o que passou, passou – fica para a nossa história regional. Contudo, há coisas engraçadas, longe da imaginação do senso do comum dos mortais. Relata-nos Carlos Dias que, em informações ditadas por portugueses, um dos conflitos culturais que poderiam existir era o relacionamento dos alemães com as mulheres portuguesas, sem dúvida pelo ciúme e sentimento de posse dos locais.

 

Nós, a malta do bairro da Caixa [zona da praça do Ultramar], ficávamos sentados à sombra, sempre no canteiro do mesmo prédio, à espera de amigos e amigas, onde se incluíam jovens portugueses e alemães, numa mistura que já fazia prever uma boa comunicação entre nós e os novos estranhos vizinhos. O que veio a verificar-se, com o empréstimo do campo relvado de futebol e os convites para as matinés da Casa Alemã. Uns anos de juventude fantásticos, que nos abriram os olhos e a mente a novos interesses culturais, pelas discussões que tínhamos com os alemães – a literatura, o cinema, o teatro e a música passaram a fazer parte do nosso quotidiano. Nem sei quantos eramos, mas a trupe era da melhor cepa de Beja.

 

RIP ao Zé Conduto, primeiro artista com instalações, ao Jorge Aleixo, que fundou alguns dos primeiros grupos rock de Beja, ao Dino, guru Hare Krishna, e ao Manel Tavares, grande jornalista. Aos ainda vivos – ao Cenoura, hoje, um grande filósofo, ao Ricardo, ex-ministro do mar, ao Luís Santana, grande gestor, ao Zé Lança, célebre criador de facas artísticas, a mim, coitado, que tento fazer alguma coisa em Beja, ao Zeca Pacheco e su hermana Josefina, ao Ramiro que fazia boas fotos, aos manos Caetanos, dos futebóis de nível nacional, aos manos Toscanos e a todos os outros que sempre amaram esta terra que os viu nascer e estudar. Isto é que foi de valor, valeu bem a pena estes anos fabulosos. Ficámos amigos para sempre… Abraços ao que estão e aos que já foram, mas nunca esquecidos.

 

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