Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: A filosofia da videira

29 de maio 2023 - 16:00
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Numa das minhas deslocações à vinha, tantas quantas o trabalho obriga, imposta pela necessidade de acompanhar a natureza da videira arreigada dos seus estranhos e variados humores, senti o aflorar de um pensamento, ao aperceber-me de que as frondosas cepas de Alicante Bouschet tinham despertado para outro estado fisiológico.

 

E que, apesar das alterações, e constantes transformações, há coisas eternas, cuja repetição sazonal nos dá a garantia que a vida nos oferece permanência e lealdade. Decorrente da observação das várias fases que compõem o ciclo da videira, é inevitável a constatação de que a videira, e as plantas em gera, são metáforas da vida humana.

 

Ao observarmos a videira, no fim do outono, a planta entra num repouso vegetativo, num estado de dormência, e deixa cair todas as suas folhas. Ou seja, independentemente do mês, do dia, da hora, sabemos que o fenómeno é inevitável, a vinha morre para depois renascer mais tarde na estação da primavera. E como tal, não deveríamos adotar este modelo protótipo do mundo natural, do regressus ad uterum como hermenêutica de vida?

 

O ritual iniciático é uma condição inerente à condição humana, que tende a ultrapassar a morte iniciática, que permite aceder a uma vida espiritual superior e participar no sagrado, numa tentativa de recuperar a vida para lá da angústia e da sombra. Sem uma viagem introspetiva de perscrutação ontológica, não é possível obter a ipsi-revelação de acordo com Miguel Unamuno. Desde Gilgamesh que o sentido iniciático da descida aos infernos implica vencer os vários castigos inerentes, e, depois de conseguir tamanha proeza, conquista uma espécie de imortalidade. Só através desta experiência é possível vivenciar a aparição do eu a si mesmo.

 

 

Num mundo onde tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, irrompe da força das raízes esta verdade insofismável: a raiz procura algo saudável, perfeito e verdadeiro. Esta busca é movida por uma conturbada ânsia de escapar à mediocridade e um desejo de alcançar a singularidade, através do nascimento dos seus frutos “duros de certeza e de frescura…, que mostram ao céu cor e doçura…, roxa de mosto, de saúde e rumo…, a poesia é o sumo desta harmonia plantada” (Miguel Torga). Imersa neste imaginário poético, imbuída da força germinadora do ciclo da vinha, a vida assume um lugar singular.

 

 

Nesta perspetiva, a existência ganha um contorno especial, e somos desafiados a um olhar que vá muito para além de nós próprios, que ultrapasse os limites do nosso tracejado, que transponha o circulo das nossas preocupações imediatas, que se projete para lá do horizonte da nossa miopia… e perceber que a vida não se resolve apenas com aquilo que temos ou alcançamos, mas sim através de uma linguagem misteriosa estabelecida entre a nossa escala e outra escala mais ampla que se consubstancia na própria existência.

 

E através deste exercício, olhamos para a videira como uma metáfora, porque enraizada no chão, move-se em direção à luz, e ao alcançar os céus evoca a eternidade. E com os pés na terra, nutridos pelo “húmus da alegria” (Miguel Torga) sentimos desabar as muralhas do preconceito, e somos conduzidos à nossa verdadeira natureza instintiva, aquela que se dissolve na unidade, que possibilita a irmandade entre os homens.

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