Diário do Alentejo

Genética e Preconceito

21 de março 2023 - 09:00
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Texto José Valente

 

Nas décadas de 50 e 60 a URSS era uma superpotência juntamente com os EUA. Estávamos na época da Guerra Fria. Em 1957 a URSS enviou para o espaço o primeiro satélite artificial da História, o Sputnik. Em 1961 colocou o primeiro astronauta em órbita, Yuri Gagarin.

 

No entanto, o regime soviético estava muito fechado e vivia com muitos preconceitos. A genética e a informática eram dois pontos fracos do sistema.

 

O problema da genética começou a despontar na década de 30 com um charlatão chamado Trofim Lysenko que se aproveitou da paranóia de Estaline, o qual via inimigos do comunismo por todo o lado destinados a derrubá-lo do poder. Foi a altura das purgas estalinistas.

 

Uma das vítimas destes ataques foi Nicolai Vavilov, acusado de ser inimigo do povo, traidor e de estar do lado de propagandistas do nazismo e de espiões ingleses. Perseguido injustamente por Lysenko, acabaria por morrer na prisão.

 

Nicolai Vavilov era um dos maiores botânicos do mundo com trabalhos de investigação importantes na genética vegetal, tendo com a sua equipa colecionado mais de 150 000 variedades de plantas. Ao criar a Academia de Ciências Agrícolas pretendia estudar estas plantas e obter aquelas com interesse económico que se adaptassem aos solos e climas dos vários territórios da URSS.

 

Vavilov defendia a teoria cromossómica da hereditariedade, que teve início com as experiências de Mendel na Europa e depois foi ampliada por Morgan, nos EUA, no início do século XX.

 

Os desenvolvimentos científicos mostraram que os núcleos das células continham cromossomas e estes eram formados, principalmente, por genes, os quais transmitiam as características dos pais aos filhos por meio das células sexuais e através do processo da hereditariedade.

 

Lysenko condenou esta teoria científica da hereditariedade apelidando-a de teoria “morgano-mendeliana” e afirmando que era resultado da ideologia capitalista e negando o materialismo dialético em que assentava o comunismo. Ele negou a existência dos genes e concluiu que a teoria genética que afirma a existência de competição dos indivíduos de cada espécie na obtenção dos recursos naturais é um mito capitalista.

 

Francisco Ayala, no seu livro A natureza inacabada, cita o que escreveu o filósofo Prezent, seguidor das ideias de Lysenko, no Leningradskaya de maio de 1947: “O capitalismo, durante o seu período histórico florescente e no cume da sua cultura, produzia uma das criações supremas do pensamento biológico: o darwinismo, uma visão histórica do mundo orgânico. O capitalismo corrupto produziu, durante o período imperialista do seu desenvolvimento, um bastardo abortado da ciência biológica: a doutrina metafísica e anti-histórica da genética formal”.

 

Ao afastar-se da prática agrícola onde se aplicam as leis da moderna genética na seleção de sementes e defendendo uma ideia por provar denominada “vernalização”, a agricultura soviética dos cereais foi conduzida ao desastre, contrastando com o sucesso dos países ocidentais.

 

Na genética humana, tal como na genética vegetal, enquanto houve dificuldades em se afirmar na URSS, no Ocidente as investigações foram muito positivas e evoluíram para a decifração do genoma humano. E o que é o genoma humano? Será que os genes existem? E será que a existir eles são responsáveis por algumas características dos indivíduos?

 

Matt Ridley afirma, no seu livro Genoma, o seguinte: “O genoma humano – o conjunto completo dos genes humanos – vem embalado em 23 pares de cromossomas separados”. No mesmo livro o investigador diz que a vida consiste na capacidade de se replicar e de criar ordem. É evidente que as ovelhas geram ovelhas e os seres humanos geram seres humanos, criando cópias quase semelhantes aos originais. Este processo só é possível devido à codificação das características dos seres vivos na macromolécula do ADN e da sua propriedade de se poder reproduzir. Matt Ridley afirma que: “As coisas vivas produzem cópias aproximadas de si próprias…”.

 

O ambiente académico de liberdade e de ausência de preconceitos proporcionou aos curiosos cientistas da Europa e dos EUA descobrirem os segredos da vida e a descodificação do ADN e da sua estrutura em espiral. Assim, as primeiras ideias para um mapeamento do genoma, com grande importância para se localizar os genes das doenças, surgiram na Europa Ocidental e nos EUA.

 

O Projeto Genoma Humano constou da maior investigação científica internacional na área da Biologia, visando descobrir os pares de bases nitrogenadas que constituem o ADN humano, sequenciar os genes do genoma humano e determinar a sua função. Foi iniciado em 1990 e terminado em 2003 com o mapeamento de 92 por cento do genoma. Em 2022 completou-se parte do que faltava. Para além dos EUA e Europa (França, Reino Unido e Alemanha) também participaram os países do sudeste asiático Japão e China, os quais estão muito desenvolvidos nesta área de investigação e ainda outros, totalizando 18.

 

Esta teoria genética que se desenvolveu principalmente no Ocidente e que culminou no Projeto Genoma Humano não afirma que o ambiente não influencia os seres humanos, mas antes propõem que a personalidade, caráter e inteligência humana se devem à combinação da genética com o ambiente envolvente.

 

Lysenko tentou comparar a realidade humana com a prática agrícola relacionadas com a genética moderna de cariz ocidental denunciando no jornal “Literaturnaya Gazeta de 1947” que, segundo os capitalistas ocidentais, os indivíduos mais bem adaptados saem vitoriosos, ou seja, os empresários possuem mais recursos que os operários porque são mais inteligentes e capazes devido à sua herança biológica. Mas não é isto que a moderna genética afirma.

 

Quanto à influência do meio ambiente na personalidade, caráter e inteligência humana, o eminente português Germano Sacarrão evidencia-o. No livro Genética e Política do seu amigo Richard Lewontin, conhecido marxista, faz-se alusão aos estudos com gémeos onde a importância do meio ambiente se demonstra.

 

Existem muitas dúvidas na compreensão da personalidade humana e da complexidade do cérebro. A carta da ONU dos direitos humanos faz alusão à dignidade humana e uma verdadeira solidariedade mundial torna imperativa a progressiva eliminação da pobreza na Terra, onde a fome não tenha lugar e todos possamos ser felizes. Aqui parece não haver dúvidas e essa possibilidade também está inscrita na nossa natureza humana.

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