Diário do Alentejo

Crónica de Jorge Martins: A expressão da liberdade

13 de fevereiro 2023 - 11:00
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Recentemente, conheci um jogo infantil cujo teor podemos facilmente extrapolar para outras faixas etárias.

 

O jogo, cuja ideia e criação estiveram a cargo de um grupo português, consiste, resumidamente, num conjunto de cartões ilustrados (e bem!), cada qual com dois cenários.

 

Estes cenários ilustram situações da vida real em que o jogador, lá está, preferencialmente criança, tem de decidir sobre qual dos cenários considera correto ou aquele que, no seu entender, seguiria se confrontado com tal situação. Completam o baralho três cartas “master”, com as questões: “Como?”; “Porquê?” e “Alternativas”. O intuito é conversar, explorar, conhecer e potenciar a capacidade de argumentação.

 

O jogo foi-me emprestado e o meu entusiasmo em experimentá-lo era notoriamente superior ao da criança que tenho em casa. Mas rapidamente, após a “estreia”, se tornou numa espécie de vício/desafio, em que a vontade de descobrir mais foi ganhando forma, de ambos os lados.

 

Finda a primeira ronda de dilemas, enviei uma mensagem à pessoa que me havia gentilmente emprestado o jogo a dizer apenas: “não tenho coração para este jogo”. Não pela sua intensidade física, naturalmente, mas pelo impacto emocional que me provocava cada resposta. Este impacto traduzia-se, na prática, num misto de orgulho com certeza. Certeza que de que aquela criança, que é a minha, sem falsas modéstias, está no bom caminho para ser uma pessoa boa. Uma pessoa certa. Aos meus olhos de pai, claro, mas – e mais – aos olhos da sociedade. E por mais que saiba que dos certos pode não rezar a história, dos decentes pode não viver a trama que é a vida adulta, mesmo sabendo que quem melhor se vende é quem chega mais longe, mesmo que seja a tal maçã podre do pomar, estou certo que é a formar pessoas pelo exemplo e dar-lhe aquele que entendemos ser o melhor dos exemplos, que podemos alimentar alguma esperança nas gerações futuras.

 

Por estes dias muito se falou de pessoas, pese embora não tenha sido esse o foco.

 

Não sou de análises cientifico-elaboradas ou histórico-sustentadas, mas sim de análises pragmáticas e, tentativamente, justas.

 

Já muito se escreveu, disse e ouviu sobre o que se passou recentemente no Teatro São Luiz, em Lisboa. Discorreu-se sobre opções, dissertou-se sobre decisões, deu-se palco, bateram-se palmas e ouviram-se apupos.

 

Creio que logo à partida qualquer análise se torna desviante quando se esquece a rama, a essência do ato e de quem o pratica. E essas são, invariavelmente, as pessoas. São elas que estão no centro do melhor e do pior que vemos. As suas orientações vêm por inerência, erradamente, mas o ADN destes episódios não se cinge, não se pode cingir, a cores, credos, raças, opções ou orientações. Antes de tudo isso, mais do que tudo isso, acima de tudo isso, têm que estar as pessoas. O quão inqualificável é cada ação não pode ser medido por nenhum destes fatores. Uma má decisão é só isso: uma má decisão. A liberdade de expressão, lata no seu conceito, discutível na sua aplicação, não pode, nunca, sobrepor-se ao respeito pelo próximo. Pelas pessoas. Temos hoje ao nosso dispor poderosas ferramentas que nos permitem chegar longe e usar dessa liberdade para alcançar os nossos propósitos. E dessas não faz parte, não pode fazer parte, invadir o espaço do próximo sem pedir licença, sem pré-aviso.

 

Pedir respeito num gesto de puro desrespeito é, além de um brutal contrassenso, uma inversão do conceito de liberdade e uma das lições mais elementares nos módulos iniciais do processo de educar alguém. E se isso falha mais adiante, algo falhou no processo.

 

Não me parece razoável chamar a nós o papel de vítimas com gestos em que somos nada mais do que agressores.

 

Por maior que seja o motivo ou o desespero, as medidas irrefletidas só fazem com que o processo fique desvirtuado. E o resultado é, invariavelmente, que a credibilidade da luta, seja ela qual for, se perca pelo caminho. Quando nos dizemos defensores de uma causa, seja ela qual for, carregamos nos ombros a responsabilidade da representatividade.

 

Não é por isso admissível que, independentemente do contexto, disparemos conscientemente e inconsequentemente em todas as direções, reclamando um lugar em nome da “justiça” e “igualdade”.

 

Dirão, justamente (ou não, depende do ponto de vista), que “só quem passa por elas é que sabe”. Que não podemos julgar em causa alheia quando desconhecemos o que é sentir essas dores ou estar nessas peles. Não é esse o objetivo das palavras que vos dirijo, pois há temas que considero que nem discutíveis deveriam ser, em 2023 (século XXI para os mais distraídos), tampouco em praça pública. Eu escrevo hoje sobre pessoas, sobre liberdade do próximo, sobre respeito, sobre ação-reação, sobre o comportamento que gera comportamento.

 

Houve, neste processo, opções por pessoa(s) que têm que ser respeitadas pelas demais pessoas. Houve um profissional que viu o seu trabalho invadido e desrespeitado, levando (este gesto) de atrelado mais outros quantos profissionais que naquela noite estavam, tão somente, a exercer a sua profissão de forma livre.

 

Este não era um dos cenários colocados no jogo dos cartões que atrás mencionei. Mas, digo-vos eu, se fosse, estou certo que o ser de oito anos com quem estava a jogar me daria uma resposta bem mais razoável a este desafio.

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