Diário do Alentejo

Crónica: "A Sibila"

20 de dezembro 2022 - 09:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Assinalado o centenário do nascimento de José Saramago, não seria próprio deixar o ano correr até ao fim do seu pavio, como uma vela que por inevitabilidade se extingue, sem deixar registado (assinalado, comentado, recordado) um outro que, embora menos mediático, não deixa de se nos oferecer como um ponto de referência fundamental da filologia portuguesa: o centenário do nascimento de Agustina Bessa-Luís.

 

Compartilhando com Saramago o ano do seu nascimento, Agustina, propositada ou ingenuamente, acabou destinada a superá-lo na morte, vindo a sobreviver-lhe por mais nove anos. Da obra que deixou, muito se tem estudado e publicado, mas quase sempre no âmbito de reflexões académicas, no geral pouco hábeis a transformar a teia da aranha na linha simples e recta.

 

Neste sentido, a retórica meândrica e o discurso complexo com que as universidades têm abordado a obra de Agustina casa na perfeição com o estilo da autora, também ele labiríntico e confuso. É dessa natureza A Sibila, obra publicada em 1954 e que transporta até nós tonalidades e ruídos dessa portugalidade minhota de meio século, comprimida entre os tempos que passou e os que haveria de passar, tolhida por um mundo rural povoado pelas famílias de sempre, desenhado pelas mesmas ruas e praças, pelas mesmas casas, de onde não se podia sair e emoldurado pelas mesmas faces que não se poderiam deixar de ver. A história de A Sibila é a história de Quina e da sua família.

 

Centrando-se nesta mulher, a acção recua um século, até 1850, para depois se estender ao longa da biografia de Quina, em particular a partir de quando, em jovem, se apercebe de que possui uma ascendência sobre os restantes, um certo dom sibilino quase místico para compreender a natureza humana, o que lhe permite antecipar comportamentos e acções, assim como adivinhar pensamentos antes mesmo de tomarem forma ou prever reacções que os circunstantes julgariam imprevisíveis ou instintivas. Desses tempos ficou-lhe o reconhecimento e o rótulo de sibila, o que lhe granjeou maior respeito nas suas relações familiares, entre as casas vizinhas e por toda a comunidade onde se inseria.

 

Quina é uma personagem forte, trabalhada, uma mulher que domina a sociedade, reverenciada por todos excepto pela narradora, também ela uma entidade feminina, presunçosa, rival da protagonista em império e soberania.

 

A narradora, admirando o dom de Quina, não se coíbe de lhe acoimar os defeitos, nem reprimir as detracções da protagonista, acusando-a de intriguista, mesquinha, vingativa, sobranceira, orgulhosa e altiva. Ao leitor, há-de parecer curioso achar-se no meio de duas mulheres que se gladiam por poder e influência.

 

A Sibila inaugura a importância do universo feminino, que Agustina haveria de transpor para outros romances posteriores, protagonizados por mulheres fortes, cinzeladas com atenção, dotadas de competências naturais para a liderança, mas definitivamente nem sempre bem estimadas pela narradora, também ela feminina.

 

Neste que hoje evocamos, apontaríamos talvez um certo comprazimento da narradora em difamar a sua protagonista, como se pretendesse atestar a imparcialidade da sua narração, desprovida de feminismos, partidarismos ou quaisquer outros ismos inimigos da clareza, do rigor e da objectividade do relato.

 

Naturalmente, o relato de A Sibila não é objectivo, como nunca poderá ser o de qualquer ficção. O que temos em mãos é um jogo, um logro narrativo em que o leitor aceita participar. O que nele se narra, parece tentar fazer-nos crer a narradora, é sinceramente o que ocorreu, embora os eventos não sejam narrados apenas uma vez ou de uma só perspectiva. Pelo contrário, o discurso é repetitivo, como é próprio das memórias, que se repetem em torrentes, embora providas de diferentes tonalidades e sempre acrescentadas de algo que ficara por dizer.

 

Um romance biográfico será sempre um romance de memórias, e estas não se oferecem todas de uma só vez, nem se copiam a cada pensamento; antes se reinventam a cada evocação, se ofuscam ou se aclaram consoante o estado de ânimo de quem a elas recorre.

 

Assim é também A Sibila, um romance em que o presente se faz a partir do passado e por este se legitima. O nosso convite para esta semana é que se comemore o centenário do nascimento de Agustina Bessa-Luís, uma escritora que nasceu em Outubro de 1922 e, pelo que dela permanece, nunca há-de morrer.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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