Diário do Alentejo

Crónica: "A importância de ser Earnest e outras peças"

22 de novembro 2022 - 09:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Poucos dramaturgos oitocentistas apontaram uma mira tão contundente a uma sociedade que se tinha por virtuosa e praticante de bons costumes, quando na verdade celebrava a frieza dos relacionamentos sociais e o servilismo das classes inferiores, como Oscar Wilde. Em A Importância de Ser Earnest, o autor britânico celebra a ingenuidade humana, que leva muitas pessoas a se sobrevalorizarem e a acreditarem genuinamente na realidade que a sua mente arquitectara, onde se presumem absolutamente singulares.

 

Por inevitabilidade, a tradução do título desvaloriza o jogo de palavras do original The Importance of Being Earnest. O termo inglês “earnest” designa tanto “seriedade” como “sinceridade” ou “honestidade”. O enquadramento teórico da peça assenta no argumento de que os dois conceitos são inimigos da moralidade, na medida em que podem assumir diversas formas. Levadas ao limite, a seriedade e a honestidade podem redundar em hipocrisia, presunção ou num desmedido sentido de dever.

 

A acção ocorre em redor de um homem, que é e não é Earnest, tanto em nome próprio como nas qualidades que o vocábulo define. A circunstância de alguém poder ser ou não “earnest” constitui, desde o título, um paradoxo, na medida em que a importância de ser… “earnest”, isto é, sério e honesto, revela igualmente, por contrapeso, a importância de o não ser.

 

Como se depreende, a peça de Wilde é um tratado teórico à superficialidade, às aparências ilusórias, à cobiça e à hipocrisia, vocábulo que, a título de curiosidade, é uma evolução etimológica de hupokrisis que, no Grego Clássico, pretendia designar fingimento… ou actor.

 

Neste sentido, todas as personagens secundárias que imprimem em Jack (que jura ser Earnest!) a importância de ser sério e sincero e que conferem um valor imensurável à sobriedade e honestidade são, no fundo, hipócritas. A verdadeira moralidade não pode ser senão precisamente o oposto da seriedade e da honestidade: a irreverência.

 

Para Oscar Wilde, a palavra “earnest” compreende duas noções distintas, porém relacionáveis: a noção de falsa verdade e a noção de falsa moralidade ou aquilo a que mais comummente denominamos de moralismo. O moralismo da sociedade vitoriana, a sua pomposidade e solenidade impelem Jack e Algernon, os dois protagonistas masculinos, a criar alter egos, na tentativa de se libertarem dos grilhões das convenções sociais e da restrição exacerbada a que a decência e a rectidão obrigavam.

 

A moralidade é, de resto, um dos tópicos de conversa predilectos em A Importância de Ser Earnest. Algernon é da opinião de que as classes trabalhadoras devem servir de exemplo moral para as classes altas e de que a cultura moderna depende fundamentalmente daquilo que não se lê. As limitações comportamentais que sustenta são o reflexo dos códigos morais que atravessavam sociedade da época; no entanto, a intenção de Wilde não parece ser a distinção entre aquilo que é ou não moral. Na verdade, o dramaturgo britânico posiciona-se num patamar acima da mesquinhez de tal distinção, a partir de onde faz troça do próprio conceito vitoriano de moralidade, que entende ser um corpo rígido de regras e de princípios que determinam o modo como alguém se deve ou não comportar.

 

Como era práxis da alta sociedade vitoriana, o tema do casamento ocupa um lugar de destaque no palco. É, no fundo, a força motriz do enredo e o tema primordial de debate e de reflexão filosófica. Os argumentos, algo cínicos, reflectem genuínas preocupações vitorianas sobre respeitabilidade, elevação social e rendimentos. O entendimento de Algernon sobre o casamento é um tanto descontraído, até se apaixonar perdidamente por Cecily. Já Jack assume-se como um verdadeiro romântico, embora revele a Algernon que a verdade nunca deve ser enunciada a uma jovem mulher, sobretudo se for educada, meiga e refinada. Na última cena do último acto, ao se dar conta de que não dissera outra coisa senão a verdade, ainda que inadvertidamente, suplica por perdão a Gwendolen. A jovem hesita uns instantes, mas acaba por condescender, na condição de que Jack prometa não voltar a cometer tamanha falta, o que alegoriza uma perspectiva cínica que também as mulheres mantêm a respeito da natureza dos homens e do casamento. De todo o modo, o que um membro da sociedade considera decente ou indecente não determina nem condiciona o que é a decência. O maior paradoxo da peça – assim como da vida – é precisamente a impossibilidade de se ser Earnest (sério ou sincero) e, ao mesmo tempo, possuir comportamentos considerados moralmente aceitáveis. Oscar Wilde defende que a virtude é propriedade de quem se oferece à trivialidade dos dias.

 

Ao ler a peça 127 anos após a sua estreia, assalta-nos a questão de saber como terá reagido o público da época, mais experimentado na realidade vitoriana, em que a astúcia e o artifício eram os instrumentos de elevação e de consolidação social; um público que terá abandonado a sala de teatro, abotoando os botões dos casacos, após ter sido alternadamente entretido, provocado, insultado e deleitado. E quem pode dizer que depois desta peça a sociedade não se tornou um pouco mais consciente? Afinal, como escreveu Oscar Wilde em De Profundis, a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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