Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: Na história, mas acima da estória

07 de novembro 2022 - 18:30
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

I. Fui uma das muitas alunas (e alunos) que Adriano Moreira somou ao longo da sua vida. Licenciei-me em 1987, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) que, na altura, funcionava no hoje, “bastante degradado e em estado de abandono”, Palácio Burnay. Como professor, marcou o meu percurso no ISCSP e, em razão disso, guardei-o sempre na memória. Recordo que usava apenas um caderno ou um livro, que colocava em cima da secretária.

 

De pé, abria-o e começava a falar. Ilustrava as matérias com exemplos da sua vida, da sua experiência, intercalados com acutilantes pinceladas de humor, característica daqueles que já viveram bastante e têm um conhecimento profundo da natureza humana. Embalada por aquela voz, foram muitas as vezes em que me esqueci de tirar apontamentos, algo essencial naqueles tempos, para fazer as devidas sínteses. Durante as aulas, não havia barulhos, nem repreensões. Falava-se, ouvia-se, esclareciam-se dúvidas, trocavam-se perspectivas. Da parte do professor, sentia-se rigor e disciplina; aos alunos pedia-se brio e disponibilidade para dar o seu melhor.

 

No dia do seu falecimento com a vetusta idade de 100 anos, multiplicam-se declarações e pontos de vista acerca da pessoa e das escolhas que fez, em particular, ao longo da sua vida profissional, como também diversas homenagens, de vários quadrantes, emanadas, quer em nome de organizações, como de figuras ilustres da nossa praça. O testemunho do seu filho, João Moreira, publicado no Diário de Notícias, enfatiza o que, nesta circunstância, mais me interessa: a sua dimensão pessoal.

 

Filho de um polícia e de uma costureira, Adriano Moreira nasceu pobre. Às custas do seu trabalho, do seu empenho e da sua inteligência, construiu um percurso que lhe permitiu ascender socialmente. “Sem lamentar a pobreza, nem invejar a riqueza”, foi sempre grato aos pais, orgulhando-se das suas origens. Esta forma de estar desenhou o seu pensamento político: “não é preciso limitar o sucesso de cada um, mas sim compensar as diferenças entre os vários pontos de partida, para que todos tenham oportunidade de sucesso; meritocracia, temperada com humanismo cristão.” Fazendo uso de diversos exemplos, João Moreira denomina-o como “um grande pai de família”, “um homem justo e decente. Ético.

 

Seja na esfera pessoal ou profissional.” O facto de ser uma pessoa de convicções determinava também o seu “despreendimento”, no sentido de manifestar uma “capacidade de aceitar, com dolo necessário ou eventual, as consequências negativas de decisões tomadas em nome dos seus princípios e do seu sentido de justiça. Porque esse é o verdadeiro teste de caráter.” Neste seguimento destaco, já “numa fase mais recente, a sua demissão de Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, por discordar das políticas de educação que estavam a ser adotadas - renunciando a um dos cargos que mais gostou de exercer, com adequação perfeita ao seu perfil e estatuto e que representava, dada a fase de vida em que já se encontrava, uma das últimas oportunidades que tinha para se manter no jogo. A questão de princípio, neste caso, levou-o ao ponto de, já Senador, aceitar participar num programa de televisão a partir da plateia, para ter a oportunidade de expressar publicamente a sua divergência da política seguida pelo então ministro responsável pelo ensino superior (convidado no referido programa), que tinha idade para ser seu filho”.

 

O texto transpira admiração do filho pelo pai: “a dimensão pessoal do meu pai era ainda superior à dimensão da figura pública.” Concorde-se ou discorde-se, este é, a meu ver, o maior feito de Adriano Moreira!

Descanse em paz, Prof.

 

II. Os meus conhecimentos sobre futebol não permitem identificar um fora de jogo. Mas sei que, para muitos estrangeiros, quando se fala em Portugal, eles exclamam: «Cristiano Ronaldo!» O futebol é um desporto de massas e, por isso, os índices de popularidade de um jogador de futebol podem ser astronómicos. Em particular, se estamos perante alguém que detém marcas únicas, com múltiplos recordes. Julgo ser consensual que Cristiano Ronaldo é uma lenda do futebol e, sendo português, contribuiu e contribui para levar o nome do país a todos os cantos do mundo.

 

Ele sabe que o futebol também se faz para além das quatro linhas. É conhecido por ser, dentro e fora do campo, um atleta altamente focado, determinado, com uma enorme capacidade de trabalho, persistência e, claro, habilidade e talento. Aprendeu a gerir muito bem estas características o que faz com que seja, hoje, muito mais do que um jogador de futebol: tornou-se uma inspiração para os jovens, uma prova viva de que, não obstante as suas origens serem humildes, é possível mudar de vida.

 

Por tudo isto, o bruaá que nos últimos tempos tem rodeado Cristiano Ronaldo, incomoda. E não é propriamente o que se diz ou se escreve. Actualmente qualquer um diz ou escreve a “sua” verdade, tendo isso a importância que se lhe entender dar. Confrangedor é ver o Cristiano Ronaldo não saber lidar com uma situação nova, “imposta pelo jogo”, “pondo-se a jeito” ao não conseguir disfarçar o seu desencanto!

 

Acredito que o seu pragmatismo irá ganhar ao sentimento e à emoção.

We’ll always have Cristiano Ronaldo!

 

Final:

Cada pessoa é única e incomparável. Partilhando com outras, porventura, alguns traços ou características. Então, o que é que Adriano Moreira e Cristiano Ronaldo têm em comum?

Nada. E talvez muito.

Homens empenhados e de convicções fortes, partilham as origens modestas, ascenderam a pulso e construíram trajectórias dignas de nota. Conseguiram posições de destaque nas respectivas áreas profissionais.

Adriano Moreira, nas palavras do Presidente da República, viveu e morreu “na história, mas acima da história“. Cristiano Ronaldo é um jovem que construiu uma carreira sem par na modalidade desportiva mais popular do mundo. Apesar de todos os seus cuidados, é sabido que a idade exerce uma influência considerável no rendimento físico dos jogadores de futebol.

Tal como Adriano Moreira teve o discernimento de optar pelo desapego em prol dos seus princípios, inclusivamente numa “das últimas oportunidades que tinha para se manter no jogo”, espero que Cristiano Ronaldo consiga equilibrar a sua paixão pelos relvados com a inteligência de saber escolher a altura certa para “sair desta cena” pela porta principal.

Na história, mas acima da estória.

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