Diário do Alentejo

Crónica: "Poesia de Álvaro de Campos"

11 de outubro 2022 - 10:00
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Texto Rodrigo Ramos 

 

Certa manhã, um saco de pano quase me fez atropelar um poste de iluminação pública, numa ruela já esquecida. Era um saco em tudo banal como os demais, de fazenda branca, com duas asas que se penduravam com indiferença aos ombros de uma jovem de idade universitária e que tanto daria para levar pão como livros. Aquele, pela forma rectangular e plana, deixava antever uma predilecção por literatura, o que não deixa também de ser um sustento nutritivo.

 

Cada qual tem com o seu feitio, mas não é de mim deixar-me espantar por sacos, sacolas, bolsas, malas, maletas, mochilas ou outros; tenho, todavia, uma atenuante: aquele saco trazia, em letras carregadas, a imitar uma caligrafia juvenil, a confidência professa “Tenho em mim todos os sonhos do mundo.”, ao lado da figura contornada de um Fernando Pessoa sereno, caminhando tranquilamente pela rua, com um livro debaixo do braço.

 

E, talvez para evitar que algum bruto arraçado de delinquente imaginasse no objecto uma sacola para o pão, estampou-se um desses logotipos muito célebres de uma conhecida editora portuguesa. Devo tranquilizar desde já que a situação não me causou trauma. E de lá para cá, tenho descoberto essa frase estampada em tudo o que são objectos coleccionáveis, a saber, canetas, cadernos, t-shirts, canecas, pochetes, andorinhas de cerâmica, pratos, paredes de becos e travessas, babetes, fraldas e inclusivamente na cauda de um Galo de Barcelos. Toda uma indústria se ergue ao redor dos sonhos de Fernando Pessoa.

 

Na internet, sempre mais cúmplice do utilizador, acompanhava-se a explicação, num Português do Brasil com excessiva simpatia pelo uso de exclamativas: “sonhe sempre!!! Sonhar te fará crer: amor, positividade”, etc. etc. Se dúvidas houvesse, dê-se por confirmado que este é um dos versos mais inspiradores de Fernando Pessoa. Quantas pessoas se desenredaram de problemas sisudos à sua conta?Quantas ousaram sonhar e actualmente se acham num oásis de prazer e de bem-estar? Muitas, por certo. Nenhuma, infelizmente, foi leitora de Fernando Pessoa, ou de uma qualquer das suas multidões. Ou se, pelo contrário, em tempos o foi, hoje envergonha-se de ter esquecido tudo. Antes que me pergunte o leitor como ouso arrastar para esta acusação a jovem universitária que, por breves momentos, se cruzou comigo numa ruela, permita-me deixar claro que este é, na verdade, um dos versos mais angustiantes da obra de Pessoa. Não só nunca pretendeu libertar o indivíduo do seu encarceramento individual, como é ele próprio o mais claustrofóbico dos cárceres.

 

Eu explico: o verso que se encontra por toda a parte e que muitas pessoas usam como insígnia de alento e determinação foi recolhido desleixadamente da primeira estrofe do poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos. A estrofe a que pertence completa-se do seguinte modo:

Não sou nada.Nunca serei nada.Não posso querer ser nada.À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

 

Sendo, como dissemos, a estrofe inicial, determina o tom pessimista de todo o poema (tomem nota do adjectivo, ó aqueles de vós que todas as manhãs bebem o leite com café ou o chá numa caneca comessainscrição: pessimista). Em abono da verdade, nem todos os versos são pessimistas; alguns são apenas inquietantes, inconformistas e deprimentes. Como se vê, muito do que foi feito por editores resultou num atentado ao poema e a Fernando Pessoa, que se possuísse alma para superar a morte, haveria de entender este esfrangalhar da sua obra como um ultraje.

 

Para que não se acuse este colunista de falta de serventia, aqui ofereço aos estudantes do secundário uma breve, mais muito válida análise literária da estrofe em questão, e peço encarecidamente a absolvição dos professores de Português que, no próximo teste, venham a encontrar várias respostas copiadas ipsis verbis do que aqui deixamos escrito:

 

Na transcrição, o sujeito poético mostra-se descrente, deprimido, incapaz de se libertar do nada que é, com o avulto de se ver sufocado por todos os sonhos que possui. Os três primeiros versos negam aoúltimo qualquer sentido de esperança; pelo contrário, ter todos os sonhos do mundo – veja-se, todos! – é um motivo de maior aflição para quem quer que, sonhando, nunca possa ser mais do que o nada que é. Álvaro de Campos parece sugerir que se o ser humano deve ser nada, que o seja sem sonhos. Se ousar sonhar, que faça com esses sonhos algo mais prolífero do que apenas sonhá-los. Se descermos uns quantas estrofes, podemos notar que o sujeito-poético retira a conclusão de que o mundo é para os que actuam, não para os que sonham: “O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”.

 

Caros estudantes do secundário, querem mais? Alegro-me em sabê-lo.

 

Nada melhor do que ler Álvaro de Campos, procurar na poesia aquilo que a cultura kitsch das lembranças e souvenirs nunca poderá revelar. Como primeiro passo, sigam esta sugestão: procurem a Poesia de Álvaro de Campos, da Assírio & Alvim, folheiem até ao poema “Tabacaria”, se possível evitando a humidade do indicador salivado, e ao invés de se entregarem ao ócio do sonho, procurem, investiguem, estudem, conquistem. Boas leituras.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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