Diário do Alentejo

Crónica: "A Insustentável Leveza do Ser"

28 de setembro 2022 - 09:00
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Texto Rodrigo Ramos 

 

1968. Praga. O herói, a haver um, é Tomas, um cirurgião de Praga, que persegue uma filosofia de leveza, ingressando despreocupadamente em aventuras eróticas. Páginas tantas, conhece Tereza, uma empregada de café, e, entusiasta libertino, dá início a mais um relacionamento amoroso, sem prejuízo para as várias relações com amantes que trazia do passado e de que não abdicou.

 

Para manter Tereza feliz, Tomas decidiu-se a casar com ela. Nem por isso dispensou o seu rol de amantes, menos ainda Sabina, uma pintora talentosa, amiga e amante de longa data, por quem também Tereza se deixaria encantar. As duas acabam amigas.

 

Tomas, na passividade da sua vida de boémia, comete uma falta que nenhum homem de bom senso deveria cometer: redige e publica um artigo de jornal. Como se o facto não fosse, em si, suficientemente imprudente, fá-lo alimentando com a palavra escrita uma aleivosa condenação do regime comunista checo.

 

Assim se viu, de um momento para o outro, sem trabalho e à procura de um local mais discreto para viver, numa vila provincial. Acaba por encontrar uma ocupação como empregado de limpeza e acha essa função verdadeiramente conveniente, uma vez que o brinda de igual modo com os dois acasos que sempre perseguira: a leveza filosófica e intermináveis oportunidades para estrear novos relacionamentos eróticos.

 

Milan Kundera é possivelmente o mais inofensivo moralista, de entre os autores pós-modernistas. A insustentável leveza do ser provém de uma inversão da teoria nietzschiana do eterno retorno, segundo a qual toda a energia do Universo ocorre num padrão cíclico que se repete infinitas vezes, como o girar de uma roda do tempo.

 

A vida, pelo contrário, não é dotada da mesma propriedade ininterrupta ou incessante, o que lhe retira qualquer significado. Se um homem só tem a oportunidade de seguir um caminho, de tomar uma decisão e aceitar as suas consequências irreversíveis, sem oportunidades perpétuas para repetir escolhas ou seguir vias alternativas, para mais sem a valência da comparação, a vida estende-se por um número finito de anos desprovidos de peso, numa insustentável leveza.

 

Em última instância, nenhuma acção pode ser considerada moral ou imoral se não for possível comparar notas de viagem. Este conceito persegue Tomas. De cada vez que se decide a ficar com Tereza, é esmagado pela incerteza do que seria a sua vida, caso tivesse optado por partir.

 

Cada personagem lida com a sua insustentabilidade na imperfeição da sua humanidade. Sabina vê nessa leveza uma liberdade emancipadora, ao passo que Tereza a acolhe como se fora uma condenação: uma vida sem sentido é uma vida vazia e Tereza procura desesperadamente algo denso, compacto, que lhe atribua valor.

 

É esta batalha entre a leveza e o peso da vida, entre a luz e a sombra, que confere ao romance o seu significado. Em última instância, um romance deve ser considerado pelo seu valor artístico, mais do que qualquer mensagem política ou social. No entanto, numa narrativa datada, é curioso encontrarmos novas relevâncias, em resultado dos tempos que atravessamos, agora também na Europa Oriental. Este é um romance de leveza na leitura, como já o era no título.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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