Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: No topo do mundo

11 de setembro 2022 - 12:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Vivera sempre naquela cidade. Com aquele castelo à vista.

 

Em criança, quando possível, escapava-se de casa, e entretinha-se a subir e a descer as escadas da torre de menagem, vezes sem conta. Enquanto o fazia, inventava estórias de reis e rainhas, de príncipes e de princesas, de guerras e de batalhas. Dava-lhes voltas e voltinhas, mas acabava por chegar sempre a finais felizes.

 

Do eirado, quando olhava para baixo, via a vida a borbulhar nas ruas e nas ruelas da cidade. Depois, deixava o seu olhar prender-se no horizonte. E perdia a noção do tempo. Não sabia se esperava alguma coisa, alguma epifania. Ou se era só o prazer de se sentir no topo do mundo. E, graças à sua imaginação, conseguir fazer acontecer.

 

Por isso, aquele local era, para ela, uma espécie de espaço sagrado.

 

Com o passar do tempo, depois de uma certa ingenuidade, de muitas ilusões e de algumas ambições ficarem para trás, presumiu que aquele santuário existiria apenas dentro dela, e que talvez ele a ajudasse, na sua caminhada, a (re)encontrar a esperança e a sentir dentro de si, viva, a capacidade de sonhar.

 

A dada altura resolveu abandonar a cidade. Afastou-se. Viveu noutros países, noutras cidades. Sempre acompanhada por aquela recordação tão especial.  Em todos os países, em todas as cidades por onde andou, procurava obstinadamente aquele local de tranquilidade.

 

Certo dia, na Escócia, quando surpreendeu Scott a olhar para ela, admitiu reencontrá-lo no seu olhar. Percebeu depois que aquele olhar era, afinal, de um outro local. Um local talhado pela paixão, intenso e sôfrego, sem tempo para amar.

 

Voltou a ver o reflexo daquele olhar mais umas quantas vezes. Noutros sítios, noutras pessoas, noutras coisas. Agradava-a e divirta-a, é certo. Na sua cabeça entoava o poeta: “Timidez e audácia, /em saborosas e inconscientes proporções, /podem fazer da sedução/uma inexcedível obra-prima.” Mas não chegava para a dissuadir da sua busca.

 

Uma vez, não se lembra onde, depois de vários copos de vinho que fizeram desaparecer a culpa, o remorso e a vergonha, um desconhecido disse-lhe, com surpreendente lucidez:

 

«Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.»

 

Mas não estava a ser fácil: sempre que se mostrava, que deixava alguém entrar mais profundamente, decepcionava-se. Sempre que lhe parecia estar a encontrar um saudável equilíbrio entre o seu Eu e o mundo, algo de desagradável surgia. De dentro de si, ou de fora de si. A falta de identificação era cada vez maior, dando pontos à frustração, assim como ao sentimento de conflito.

 

Abandonou tudo e decidiu voltar à sua primeira cidade. Desde logo foi ao castelo, decidida a subir a sua torre de menagem. Sabia que o santuário que aquele local representara para si, num período inicial da sua vida, se perdera no tempo; sabia que teria de encontrar outro ou outros, onde se pudesse encontrar consigo própria, permitindo-lhe a necessária tranquilidade para continuar a fazer a caminhada da vida; sabia que não adiantava procurar fora de si, já que eles estavam dentro de si.

 

Sabia tudo isso, mas, assim mesmo, subiu devagarinho a torre de menagem. Lembrou-se de certas estórias que antes criara e, a algumas, deu-lhes outros enredos e outros finais. Nem todos felizes. Quando chegou ao eirado, protegido com merlões de ponta de diamante, demorou-se a observar a planície em todo o seu esplendor. Esperava, decerto, a tal epifania. Aquela que reuniria num só espaço, num só local, num só edifício, os seus vários santuários. Permitindo-lhes uma coexistência perfeita. E paz.

 

Hoje ainda a podemos por lá encontrar. À espera.

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