Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: A Alquimia de S. Mamede

30 de julho 2022 - 18:00
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Quando pensamos no Alentejo idealizamos quase invariavelmente longas e plácidas planícies, campos de solitária planura que se estendem em toda a sua imensidão, numa nudez sem pecado e qualquer espécie de inquietação geográfica, apenas levemente serpenteada por suaves ondulações que surgem entregues a cereais, olivais, vinhas ou montado. Quando vivemos o Alentejo esperamos, quase invariavelmente, imagens cíclicas de ondas de calor, temperaturas tórridas, nos verões ensolarados, no sol causticante e nas ondas bafejantes que nem o cair da noite é capaz de fazer soprar a mais fresca brisa.

 

Quando nos lembramos do Alentejo, recordamos as louras searas que geravam o pão, na gastronomia reluzente, vinhos quentes e macios de apelo imediato, longe dos patamares de acidez e frescura, indispensáveis para acalmar os sedentos palatos dos ataques ansiedade estival.

 

No entanto, existe um outro Alentejo, como tão bem descreve o poeta José do Carmo Francisco…” Ai que prazer estar perdido, na serra de São Mamede onde há sempre uma ribeira, que só de olhar mata a sede...”Eis a imponente Serra de São Mamede, a maior a sul do Tejo,  magnificente e guardiã dos territórios do Alto Alentejo, protectora das vinhas dos ventos agrestes - infligindo aos seus solos os degelos - e simultaneamente, impulsionadora da sua fertilidade e robustez quando redobra sobre eles, na primavera, o efeito refractivo do sol na “frescura da alvorada”. Desta alquimia natural só podiam vingar uvas de castas magnas que incorporam vinhos magistrais, com destaque para os brancos, que dignificam esta região.

 

A serra de São Mamede marca a divisão entre a Beira Baixa e o Alentejo, que o separa em dois mundos distintos. À medida que passeamos, vamos calcorreando solos diferentes, que se traduzem num incrível mosaico de manchas pedológicas nas quais as vinhas se encontram instaladas, e os diversos microclimas que a caracterizam. O que justifica o extraordinário e rico património vínico desta região, que se deixa representar, não só pelas inúmeras variedades clássicas alentejanas, como oferece um palco privilegiado para a implantação de castas oriundas de outras regiões. O modo como tudo isto se conjuga, faz de S. Mamede um local muito especial.

 

A personalidade de um vinho é o resultado direto da terra onde nasce. Os solos graníticos, o clima mais frio, as variadas exposições e as vinhas que encontram morada a 600m, ou mais, de altitude, reúnem os ingredientes que se harmonizam num terroir único. O resultado só poderia ser um Alentejo único, singular, onde se produzem essencialmente vinhos de agricultor, vinhos da serra, feitos na terra. O vinho alentejano de velha casta é um marcador da legitimidade social, participando de um ritual secular, que nos vem das nossas origens latinas, e da implantação, com os pés de vinha, de uma civilização ligada justamente a uma «arte de bem viver», capaz de proporcionar as mesmas sensações que Jacinto experienciou na Cidade e as Serras: com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio: - Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, ò vinho amável destas serras?

 

Faça-se à estrada, é já ali, e descubra este outro Alentejo.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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