Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: "A Vez dos Inocentes"

06 de dezembro 2021 - 12:15

Quando nas aldeias do país se vivia, ano após ano, um dia igual ao outro, consumido nos afazeres da sobrevivência, as povoações não desprezavam momentos de evasão que as compensavam da aspereza da vida.

Vem a propósito referir três costumes habituais no Alentejo, o dos gambozinos, o do cerradoiro da abóbada e o do rei coxo que visavam aquele intento.

 

A cena dos gambozinos generalizada em grande parte do país (chamada dos gamonilhos em algumas aldeias da raia alentejana) é uma delas. Antes de ter chegado a luz elétrica, conseguia-se à noite montar um estratagema em que caíam os incautos desconhecedores do jogo ou, melhor dito, da caçada. Nela se faziam participar as vítimas colocando-as com um saco aberto na embocadura de uma esquina para agarrar bichos esquisitíssimos que andavam perdidos na escuridão das ruas. Quanto melhor fosse o argumento dos promotores e maior a inocência dos visados mais esperança havia na diversão. Era dito aos do saco que estivessem alerta, de olhos muito abertos e ouvidos à escuta, para não perderem um só animal que por ali passasse, enquanto os companheiros iam bater as ruas da aldeia espantando os que se escondiam pelos cantos. Tudo terminava com a humilhação do caçador, de saco vazio na mão, caçado numa esparrela que matava de gozo os que a urdiam.

 

O cerradoiro da abóbada parece coisa estritamente do Alentejo, dado o particularismo arquitetónico que nele está subjacente. Ocorria na altura em que antigos pedreiros estavam em vias de terminar a cobertura de um compartimento de casa, faltando somente colocar a peça central do fecho da abóbada ou, como aqui se dizia, o seu cerradoiro, parecendo ligada à adiafa de fim de obra. Os mestres abobadeiros esperavam que passasse na rua um rapazote, solicitando-lhe que fosse pedir a outro pedreiro a dita peça, de modo a finalizarem o trabalho. Se o moço não conhecia o truque lá ia de boa-fé cumprir a ordem junto do oficial indicado que não se acanhava em meter-lhe num saco uma pedra enorme que o rapaz carregava com esforço até ao local onde o encarregaram do mister e onde, desmascarado, se transformava em bombo da festa.

 

Já o rei coxo é coisa mais de rapazes, vivida entre eles, ainda que curiosa pelo seu elaborado artifício. Dada a escarmentação dos naturais, era aos recém-chegados que se destinava o embuste.

 

-Vamos brincar ao rei coxo... – dizia o chefe da trupe, adiantando que fazia de rei e começando a coxear.

 

-E eu sou o cavalo do rei... – anunciava outro, firmando mãos e joelhos no chão.

 

-E tu és o estribo por onde sobe o rei para o cavalo... – diziam todos em uníssono para o visitante que, embora desconfiado, não queria dizer que não. Era um iniciado!

 

Entretanto, o soberano, amparado em dois dos circunstantes, já tinha ido para o monturo mais próximo onde todos se aliviavam pisando com um dos pés o despojo mais apropriado. De lá vinha a coxear, procurando não assentar no chão a sola destinada ao estribo.

 

Junto ao cavalo já alguns tinham ensinado ao noviço a forma de pôr as mãos onde ia assentar o augusto pé do rei.

 

Grande assuíce se instalava quando o desgraçado ficava com as mãos no estado que se adivinha exalando o cheiro que se sabe!

 

Bem podem os especialistas chamar a tudo isto cerimónias de iniciação ou outra coisa qualquer, todavia é com o enfiamento de outros que, afinal, o bicho Homem se compraz logo que apanha alguém a jeito.

 

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