Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: “Tradição”

12 de agosto 2021 - 09:35

A tradição é uma espécie de armazém onde se acomoda a memória, as recordações. Coisa assim como um sótão onde foram ficando materiais que passaram de uso. Resíduos que nós e muitos outros antes de nós fomos deixando. Ao acaso. Sem qualquer preocupação de conservar. Ninguém pensou no caruncho, na traça e noutros roedores do tempo. O local ficou à mercê dos anos, à espera que um curioso qualquer entrasse por ali, desviando teias de aranha à procura de um tesoiro.

 

Serve este arrazoado para dizer que nos alvores do século XX também houve em Serpa quem quisesse vasculhar na tradição. Investigaram, anotaram. Com o que foram achando, publicaram uma revista que à falta de outro nome, batizaram com a designação óbvia de “A Tradição”. Como se fosse a tradição das tradições. Em subtítulo explicavam melhor: “Revista mensal d´ethnografia portuguesa, ilustrada”. O seu primeiro número veio a lume nos idos de 1899, em janeiro, com o propósito de recolher “com todo o escrúpulo e fidelidade, o maior número possível de materiais ethnográficos”.

 

Seria fácil de dizer que a revista apareceu neste retirado espaço do Alentejo, então ainda mais periférico do que hoje, porque Serpa era uma terra de grandes tradições. Evidentemente que não foi por isso. Só um bairrismo bacoco o poderia afirmar. Tradições há-as em toda a parte, são o rasto que o homem vai deixando ao passar. Onde viveram homens, aí ficaram as marcas não só do seu labor mas também das suas evasões. Pode dizer-se, talvez desnecessariamente, que a publicação apareceu em Serpa porque aqui houve condições propícias.

 

ANTRO BISONHO

 

O nosso País era então um antro bisonho. De norte a sul, de leste a oeste. Gladiavam-se em Lisboa os políticos e no resto do País vegetava uma população analfabeta, debruçada sobre a terra, trabalhando de sol a sol, carenciada de quase tudo, temerosa, apática, subserviente. Sobre ela pairava a classe dos proprietários que, com haveres e alguma ilustração, enviava os seus filhos a Coimbra. De lá vinham doutores para reinarem com esplendor sobre a “gente boa e humilde” das terras onde imperavam os pais. 

 

A tendência deste grupo privilegiado que dominava todo o aparelho burocrático do País, acima da qual agonizava uma monarquia em fim de estação, era a de olhar para as comunidades rurais como um paraíso terreal. Nela espraiavam olhares lânguidos, num abandono lírico que desaguava quase sempre em prosa e muito frequentemente em verso. Citem-se muito rapidamente Júlio Dinis, Trindade Coelho ou Guerra Junqueiro. A exaltação do rústico, pintado a cor-de-rosa, fez época, propagando-se no seio das famílias burguesas até tarde.

 

“A Tradição” aparece neste contexto temporal, entretanto prosseguindo um trabalho já iniciado por Garrett e com mentores mais modernos como Teófilo Braga que apostaram em beber nas fontes tradicionais com a mesma paixão mas menos lirismo e mais objetividade.

 

Dois homens da burguesia local metem ombros ao projeto editorial: Manuel Dias Nunes, comerciante em Serpa, e Ladislau Piçarra, médico, natural de Brinches, que se arvoram em diretores da publicação. Do primeiro conhece-se um livro de versos (“Rosmaninhos”) e sabe-se que entendeu o sofrimento da gente do campo, parte dela freguesa da sua loja, através de testemunhos que deixou escritos na revista.

 

Parece, todavia, que “A Tradição” não teria ganho tanta notoriedade sem a presença tutelar de uma das grandes figuras da vida nacional de então, o Conde de Ficalho. O insigne aristocrata, natural de Serpa, era um homem influente, par do reino, mordomo da corte, senhor de 13 grandes herdades, cotado cientista, botânico, historiador, etnólogo, escritor. Não desmerecendo a competência dos diretores, um homem assim credita uma revista. Em carta a Dias Nunes, pouco depois de sair o primeiro número de “A Tradição”, aplaudia “enthusiasticamente” a ideia, incitando os seus mentores “a prosseguir no caminho encetado”. Esta “expontânea e sincera adhesão” do Conde tocou-os profundamente, como Ladislau Piçarra refere em panegírico publicado na revista após a sua morte em 19 de abril de 1903.

 

INSIGNES COLABORADORES

 

Embora, como se disse, a época fosse propícia a iniciativas deste tipo, parece não haver dúvidas que o lote de insignes colaboradores da publicação mensal, a ela vieram pela mão do aristocrata. De entre as 17 figuras que escrevem no primeiro número, além dos diretores e do Conde, podem destacar-se nomes sonantes da vida nacional como Ramalho Ortigão, que em frontispício refere ser a revista “o mais bello exemplo patriótico de educação pública exercido pela imprensa”, Adolfo Coelho, Alberto Pimentel, Carolina Michaelis, Sousa Viterbo, Teófilo Braga. A estes hão de juntar-se Leite de Vasconcelos e Silva Picão.

 

A estatura destes colaboradores nos seis longos anos de “A Tradição” e o alargado espectro dos assuntos etnográficos e históricos que aborda, jogam a favor da sua qualidade.

 

Michel Giacometti, que faz a nota introdutória da edição em “fac-simile” promovida pela Câmara Municipal de Serpa em 1982, deixa acerca da qualidade da revista dois testemunhos aparentemente contraditórios: o de Lopes Graça, que põe reservas ao rigorismo musical das modas reproduzidas, e o de Leite de Vasconcelos que tece encómios à publicação pelo seu desempenho ao serviço da ciência.

 

Seja como for, há que agradecer aos que nos alvores de novecentos asseguraram tão notável recolha etnográfica sobre as gentes do Alentejo (estendendo-se mais tarde ao País) tendo Serpa como alvo principal. Do recolhido se pode constatar a envergadura cultural do povo campesino na sua maioria analfabeto que labutava nas herdades da elite terratenente da região.

 

Resgatar os costumes desses homens e mulheres em tempos tão duros é honrar a tradição que os perpetua.

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