Diário do Alentejo

Liberdade desconstruída

22 de abril 2024 - 12:00
Ilustração| Susa Monteiro/ArquivoIlustração| Susa Monteiro/Arquivo

Jorge Martins

 

Já aqui falei de liberdade, mas neste mês de abril faz sentido voltar ao tema.

Explicar o 25 de Abril às crianças traz uma reflexão obrigatória que nos transporta, também a nós que, como eu, não estávamos cá por essa altura, para tempos onde só imaginação é capaz de nos levar.

E esta imaginação tem de ser munida de muitas aspas. Mesmo para aqueles que acham que os tempos recentes de confinamento devem ter sido o mais próximo que tiveram de viver no antigo regime, o dito Estado Novo, mas cuja comparação me parece, assim de repente, muito longe de poder sequer chegar a ser possível de fazer. Se não for por mais, teremos o motivo que, por si, já dita toda a diferença nesta análise e que torna ambos os tempos de restrição bastante distintos.

Mas aquilo que nos parece distante e digno de outras vidas é, não só ainda realidade por outros pontos desta ervilha que é o mundo, como tem ainda as suas fagulhas no nosso Portugal. Não gozamos todos da mesma liberdade mesmo que, constitucionalmente, assim esteja definido. A liberdade está umbilicalmente ligada a outros fatores que, não sendo alvo de liberdade de escolha, já nos colocam em patamares diferentes.

Mas se para mim não é possível comparar pela experiência, há, felizmente, quem há 50 anos por cá já andasse para poder testemunhar esse marco da nossa história e que esteja, hoje, em condições de analisar o resultado dessa luta que foi, no fundo, de todos, representados por uns quantos.

E é por esses que eu lamento.

Lamento que exista hoje tanta gente a não fazer jus àquele que foi um movimento (revolucionário) único e sem paralelo por estas bandas. Um movimento de coragem com eco generalizado, de “corpo às balas” que se materializaram, conscientemente, em cravos. O verdadeiro conceito de um por todos, tal como eternizou Alexandre Dumas.

E por esses todos, mal sabiam eles que iria entender-se as próximas gerações, que conseguiram, com mestria, levar ao extremo este conceito de ser livre.

Faltam os princípios, está a mais o vale tudo. Falta a empatia, está a mais a cobardia. Falta a racionalidade, está a mais a polarização. Falta o civismo, está a mais o egoísmo.

Na escola não queremos as crianças de terço na mão, nem de sonhos no chão. Não precisamos da imagem do chefe de estado por cima do quadro de ardósia, nem de escolas em que as pessoas são separadas por género. Não precisamos que decidam por nós o que podemos beber, com quem podemos falar ou de licença para votar.

Não é – de todo – um desejo de regresso ao passado que aqui vos trago.

A liberdade que tenho de estar aqui hoje, a escrever estas palavras, também resulta da conquista já aqui mencionada. Mas essa liberdade não deve ser isenta de uma espécie de lápis azul moral que todos nós devemos ter antes de nos expressarmos. Não é censura, é sensibilidade.

Não saber o que fazer com os louros da revolução é, digo-vos eu, como dar uma fortuna a um desgovernado, um carro de alta cilindrada a um não encartado ou, de forma mais simplória, pérolas a porcos.Não sejamos nós esses porcos e aproveitemos essa pérola de valor incalculável, fazendo dela a melhor arma para enfrentar a vida: a liberdade de ser, de estar e de respeitar. Respeitar o próximo e o anterior, respeitar a história e fazer uso desta liberdade, que alguém conquistou para nós, para podermos ser e deixar ser, sempre com a noção de espaço que isso implica.

Celebremos por isso, sempre, o que temos e o que nos foi dado de bandeja, sem ossos nem espinhas. Não inventemos gordurinhas ou nervos para adornar este prato já pret a manger.

Bom proveito!

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