Diário do Alentejo

Para si, o que foi o 25 de Abril?

26 de abril 2024 - 12:00
Uma coisa em forma de...

Texto Ana Paula FigueiraIlustração Pedro E. Santos

 

Quando se comemoram 50 anos sobre o golpe de estado que deu lugar à Revolução de Abril, o responsável por um conhecido podcast contactou-me no sentido de perceber o que aquele acontecimento havia representado para a minha pessoa.

Apesar de ter ficado grata pela putativa consideração, traduzida no convite, decidi não responder de imediato e conceder-me algum tempo para pensar. Pelo que me é dado a observar, tenho a crescente convicção de que dar uma entrevista é, na verdade, um atrevimento, cujo custo para o entrevistado pode ser elevado. A razão é simples: por um lado, se, por qualquer motivo, o entrevistado não se conseguir expressar devidamente, o conteúdo da mensagem não “passa” tal como seria desejável; por outro lado, o entrevistador, quando confrontado com a necessidade de seleccionar excertos, pode escolher aquele ou aqueles que, fora do contexto, não reflictam com rigor as ideias do entrevistado, ou levar a interpretações mais ou menos subliminares, mais ou menos dúbias. Mesmo que seja indeliberado. Por isso, alguém disse – julgo que foi Milan Kundera – que a pergunta é, só por si, um exercício de poder. Somava-lhe… ou de abuso desse poder. Em resumo: o acto de entrevistar não deixa de ser um desafio para o entrevistador e, para o entrevistado, dar uma entrevista não é tão simples, nem tão conveniente ou auspicioso, como poderá parecer à primeira vista. Talvez tenha sido sempre assim e, até agora, eu não estivesse tão desperta para isso; ou os acontecimentos que marcam a actualidade, em Portugal e no mundo, têm sido particularmente propícios a que exemplos ambíguos se sucedam sem cessar. Mas como, para além de uma certa cautela que a vida impõe, a minha “pseudoaura” (termo utilizado por Guy Debord) é pequenina, entendi aceitar. Afinal, o repto passava apenas por uma pergunta, ampla e aberta, – “Para si, o que foi o 25 de Abril?” –, cuja resposta não deveria ultrapassar os três minutos. Decidi redigir previamente algumas notas que me pudessem servir de guia. Assim foi e a dita entrevista aconteceu!

Entretanto, pretendi desenvolver um pouco mais as referidas notas e partilhá-las agora neste depoimento.

Quando me levantei, naquela quinta-feira (25 de Abril de 1974), aguardava um dia normal. Tomei o pequeno-almoço, a mãe preparou-me a lancheira e o pai levou-me à escola. Tinha oito anos e frequentava a Escola Primária do Salvador.

Um bocadinho longe de casa. Apesar de viver na freguesia de Santiago Maior (Beja) e ter entrado para a escola primária que aí existia, acabei por ser transferida. Quando a mãe pretendeu saber o porquê, disseram-lhe que uma professora, colocada naquele ano naquela escola, com uma filha da minha idade, tinha preferência. Sendo eu a mais nova da turma, tive de sair para lhe dar lugar. Foi um processo doloroso e difícil, tanto para mim como para os meus pais. Mas, como “há males que vêm por bem”, fui recebida numa escola, igualmente só para raparigas como se “usava” na altura, por uma professora extraordinária, responsável pelas bases da minha formação. Uma senhora viúva, rígida e doce, muito perspicaz. De nome Maria da Conceição Silvestre. Grata, deixo-lhe a minha eterna homenagem. Aquela era uma típica escola primária do Estado Novo: o quadro de ardósia estava ao centro da parede e, na parte de cima, havia um crucifixo. Ao seu lado esquerdo, tinha lugar a fotografia do Presidente da República e, do seu lado direito, a imagem do Presidente do Conselho de Ministros. As carteiras de dois lugares, de madeira, com o tinteiro na bancada, estavam alinhadas e viradas para o quadro e para o estrado, disposto no chão. A secretária da professora estava colocada no canto superior esquerdo e, atrás dela, pendurada na parede, morava a régua que, quando de lá saía, era para marcar uma ou outra mão de vermelho.

Naquele dia, reparei que as fotografias estavam viradas, de frente, para a parede. Como habitual, aguardávamos, em pé, junto ao respectivo lugar, que a professora entrasse e nos desse autorização para sentar. Quando ela entrou, visivelmente intranquila, explicou-nos que tinha havido uma mudança do poder, de quem mandava no país. Até ao momento, pacífica, mas que poderia tornar-se violenta a qualquer momento. Recomendava, pois, que voltássemos para casa. Assim foi. Quando cheguei a casa, os meus pais procuraram explicar-me com o detalhe possível o que se estava a passar. Depois, de um dia para o outro, a vida mudou: a guerra colonial terminou; as mulheres começaram a ver reconhecidos os seus direitos e a garantia constitucional de igualdade – durante a ditadura, a título de exemplo, só podiam trabalhar com a autorização dos maridos, não podiam exercer determinadas profissões (diplomatas, polícias ou juízas), as hospedeiras e as enfermeiras não podiam casar –; as pessoas passaram a ter o direito de se manifestar pacificamente em locais públicos e a protestar ou a reivindicar direitos laborais através da greve. Foi extinta a PIDE. Todos passaram a poder dar a sua opinião nas ruas e nas urnas, e começaram a experimentar, num crescendo, um sentimento de liberdade e de segurança na relação com o que as rodeava. Mas se a liberdade é um valor supremo, não se pode esquecer que ela aporta responsabilidade. Por isso, George Bernard Shaw afirmava que “Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela”.

Diria que sou uma privilegiada por me ter feito mulher nessa altura, por ter assistido à mudança e por viver num país cujo regime político se apelida democrata.

Passados 50 anos e, segundo dados de Fevereiro de 2024, “Portugal ocupa o 31.º lugar no índice da democracia da revista ‘The Economist’, caindo três lugares. (…) tem o pior resultado desde 2013 e continua a ser ‘democracia com falhas”. “Referindo-se à forma como os portugueses vivem a democracia, [Pedro Magalhães] diz que somos um povo de democratas descontentes e desafetos. Ou seja, nós não questionamos a democracia, mas questionamos, e bem, a qualidade dessa democracia”.

Por conseguinte, atrevia-me a dizer que a grande preocupação deveria passar por encontrar formas de melhorar a democracia portuguesa. Talvez fosse importante, por exemplo, começar por perceber, hoje, quais os significados e quais as consequências de viver e de conviver numa democracia representativa; porventura, poderia ser interessante compreender a presente dimensão e limites da condição de cidadão; quiçá entender os motivos e as repercussões da abstenção existente e da discussão entre igualdade de oportunidades e igualdade de resultados, também não fosse despiciendo. Mas, enfim, tudo meros pensamentos.

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