Diário do Alentejo

Notas d’Abril: Participação

19 de abril 2024 - 12:00
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Texto José Filipe Murteira, professor

 

“Essa torrente onde se misturava a alegria redentora da libertação com a esperança sem fim e também a raiva contra a opressão, a exploração e o medo do passado relativamente ao qual era preciso fazer justiça, para que não voltasse, nunca mais. Um levantamento popular vindo de baixo, do âmago da condição social dos que nunca tinham tido voz e entravam tumultuosamente na história.”Fernando Rosas, Ensaios de Abril, pág. 98

Em entrevista dada à revista “História” (n.º 46, outubro de 2023), António Costa Pinto (meu antigo colega de faculdade, professor, investigador e conhecido comentador político televisivo) refere a “grande dinâmica de movimentação da sociedade civil” verificada após o 25 de Abril, “na conjuntura de 74 e 75”, fruto da “genuína dimensão de participação política, não só eleitoral, mas também social”. Ora, segundo este historiador e especialista em ciência política, “(…) rapidamente, com a consolidação da democracia, seguiu-se uma etapa de desmobilização (…)”, que o leva a esta conclusão: “Portugal tem um baixo nível de participação global, não é apenas política [mas também social](…)”.

Cinquenta anos depois do 25 de Abril, importa refletir sobre os motivos que levam a este “baixo nível de participação política”, contrário a um dos desígnios da data libertadora que tantos sonhos alimentou: democratizar.

Tenho a convicção de que, para reforçar a Democracia e combater o populismo que a ameaça, é preciso incentivar e apoiar a participação dos cidadãos nas mais variadas áreas da sociedade. Infelizmente, não é isto que tem acontecido em muitas ocasiões. Basta ver a desconfiança e até a hostilidade com que, não poucas vezes, foi encarado o movimento de cidadãos bejenses, nascido no início de 2011, para lutar pela manutenção das ligações ferroviárias diretas a Lisboa.

Um responsável político regional, ao anunciar, em 2017, o lançamento de “um concurso [em 2018] para aquisição de novas carruagens” com vista ao retomar dessas ligações, acrescenta que isso só se concretizava “depois de meses de reuniões e contactos sem alaridos” (esse concurso, para automotoras bimodo – diesel e elétricas – só seria lançado em 2021 e prevê-se que as primeiras cheguem em 2025). O então deputado omitia, assim, as inúmeras reuniões que elementos do Beja Merece+ tiveram com governantes, grupos e comissões parlamentares, além, claro, das petições com milhares de assinaturas e das ações de rua com centenas de pessoas. Curiosamente, há poucos dias, esse mesmo político, ao noticiar a instalação do aparelho de ressonância magnética no hospital de Beja, volta a bater na mesma tecla, ao referir “todos aqueles que trabalharam, sem gritaria, para que este dia chegasse”.

Esta omissão reflete-se igualmente nas autodenominadas “comemorações oficiais” do cinquentenário da Revolução dos Cravos em Beja: nas várias conferências programadas não cabe o debate sobre aquele que foi o maior movimento de participação cívica na região que, para além do seu propósito inicial, trouxe para a discussão pública a reivindicação de melhores acessibilidades rodoviárias ou a rápida definição do futuro do aeroporto.

Um outro aspeto sobre o qual se falou aquando das últimas eleições Legislativas foi o facto de, nos círculos eleitorais mais pequenos, com é o caso de Beja, que só elege três deputados, uma grande parte dos votos não ter qualquer reflexo nessa eleição (28 por cento dos eleitores em 2024, 36 por cento em 2022). Isto faz com que, eleição após eleição, muitos cidadãos, que escolhem de forma consciente em quem votar (não acolhendo a teoria do “voto útil”), acabam por se sentir excluídos do sistema, uma vez os seus votos apenas contam para a percentagem nacional desses partidos/coligações. Tal podia ser minimizado com a existência do tão falado (na altura das eleições) círculo de compensação, em vigor nos Açores, destinado a compensar os partidos penalizados nos círculos eleitorais mais pequenos. Como sempre, está nas mãos dos dois maiores partidos a alteração da lei eleitoral, nesse sentido. Tenho dúvidas que tal venha a acontecer e que em futuras eleições se esteja de novo a lamentar essa lacuna e que pode mesmo limitar a participação dos cidadãos na vida democrática.

Uma outra lacuna que PS e PSD já podiam ter resolvido tem a ver com a regionalização, um processo que avançou baseado numa distribuição das CCDR [comissões de coordenação e de desenvolvimento regional] pelos dois partidos, de acordo com a sua implantação autárquica. Através de “eleições” reservadas a um colégio eleitoral de autarcas, à exceção do Alentejo, em que houve dois candidatos, foram “eleitos” presidentes desses órgãos os candidatos únicos nomeados por António Costa e Rui Rio. Sem entrar, aqui e agora, em pormenores sobre este processo, sobre o qual tenho algumas dúvidas (isto, sem pôr em causa a opinião favorável que tenho relativamente à implementação da regionalização), reitero o que já escrevi aqui, no “Diário do Alentejo”, em crónica publicada no dia 24 de novembro de 2017: esta grande reforma do nosso sistema político, que consta na constituição aprovada em 1976, só será verdadeiramente democrática quando os cidadãos nela puderem participar, através do seu voto, para a eleição de uma assembleia regional, cujos eleitos sejam os seus verdadeiros representantes na região. Essa assembleia terá o papel fiscalizador das decisões do governo regional, diga-se CCDR, algo que atualmente não existe.

Para além dos níveis nacional e regional, também a nível local (e, neste caso, falando de Beja) há situações que não contribuem favoravelmente para uma verdadeira participação dos cidadãos na vida da sua comunidade. Por falta de elementos, não me quero referir ao instrumento que, neste momento, a autarquia invoca como símbolo dessa participação, o orçamento participativo. Sendo uma iniciativa interessante, adotada em vários concelhos do País, não deverá ser, no entanto, a única a incentivar essa participação cívica.

Refiro-me, em concreto, a três órgãos importantes para a prossecução das melhores políticas nas respetivas áreas: o Conselho Municipal de Educação, o Conselho Local de Ação Social e o Conselho Municipal da Cultura. Sobre os dois primeiros, não se conhecem quaisquer atividades, uma vez que não é dado conhecimento das decisões tomadas nas suas reuniões, nem sequer da realização destas (partindo do princípio que estes dois órgãos estão a funcionar, como deveria acontecer, e que se reúnem regularmente). De qualquer modo, é uma lacuna que não deixa de ser sentida, nomeadamente, em duas áreas em que houve mais transferências de competências para as autarquias locais e cujo funcionamento democrático deveria ser exemplar.

Já quanto ao Conselho Municipal da Cultura (CMC), a situação é mais preocupante. O seu regulamento foi publicado no “Diário da República”, no dia 30 de janeiro de 2008, numa época em que pouco ou nada se conhecia acerca da existência de entidades semelhantes no nosso país, após um processo muito participado pelos agentes e associações culturais locais, que contribuíram decisivamente para o seu conteúdo. Após as eleições de 2009, e com a mudança do executivo municipal, este importante instrumento para a participação de agentes e associações culturais na discussão e formulação de políticas culturais concelhias e regionais foi pura e simplesmente metido na gaveta, de onde não mais saiu. Neste momento, esse regulamento nem consta no site da Câmara Municipal de Beja, o que é um contrassenso, uma vez que, formalmente, o CMC ainda não foi extinto.

Finalmente, numa altura em que se festejam os cinquenta anos do 25 de Abril, volto às comemorações a decorrer em Beja, já atrás referidas. Quando tive conhecimento da aprovação pela assembleia municipal realizada no dia 13 de julho de 2023, da chamada “Comissão Organizadora das Comemorações do 50.º Aniversário do 25 de Abril de 1974», escrevi numa rede social o seguinte: “Em Beja parece que não há mais vida para além dos partidos políticos (que têm, obviamente, o seu insubstituível lugar na Democracia reimplantada em 1974, mas que não são os únicos construtores e protagonistas da vida política, económica, social, educativa, cultural, desportiva do concelho, ao longo dos últimos quase 50 anos)”. Tudo isto porque essa comissão era composta apenas por eleitos dos três grupos políticos representados dessa assembleia (sete elementos) e da câmara municipal (dois elementos). Ou seja, ficavam de fora representantes da chamada sociedade civil, impedindo a sua participação na elaboração de um único programa no concelho de Beja, que contivesse todas as iniciativas organizadas pelas diferentes entidades, incluindo, naturalmente, os dois órgãos autárquicos municipais.

E, assim, temos em Beja as autodenominadas “comemorações oficiais” (com direito a carimbo próprio nos materiais de divulgação) e as “outras”, as que não são organizadas por essa comissão, algo que, em minha opinião, não tinha de acontecer, numa efeméride tão importante como é a comemoração de 50 anos de liberdade e de democracia.

Apenas como exemplo refiro três iniciativas em que estive presente e que não constam das “comemorações oficiais”, sendo que qualquer uma delas merecia ter tido o destaque que estas têm: uma tertúlia, no espaço Os Infantes, onde três cidadãos relataram as suas vivências, em diferentes contextos e locais, antes e após o 25 de Abril; a apresentação do livro e da exposição sobre os mineiros de Aljustrel, na biblioteca municipal; a conferência “Da lei da fome ao 25 de Abril”, pelo professor Fernando Oliveira Baptista, no Núcleo Museológico da rua do Sembrano.

Numa altura em que se reflete sobre tão importante data na nossa história coletiva, qualquer destas três iniciativas deu contributos significativos para um melhor conhecimento das suas causas, um dos grandes objetivos que devem nortear as comemorações, oficiais ou não.

Com esta discriminação que não se compreende, perdeu-se, deste modo, uma oportunidade para cumprir um dos grandes desígnios da data que agora festejamos: a participação livre e democrática dos cidadãos na vida das suas comunidades, deixando de ser apenas espetador passivo e reprimido, como era na ditadura, para ser ator livre e interveniente da sua “polis”, direito e dever, ao mesmo tempo, dos cidadãos atenienses de há 2500 anos.

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