Diário do Alentejo

Gastronomia: O poder do arroz-doce

14 de junho 2021 - 14:45

Texto Virgílio Nogueiro Gomes

 

Os doces populares criaram raízes, evoluíram, e ficaram irremediavelmente associados a tradições. Não há festa ou romaria, e especialmente casamento, sem um arroz-doce. Também se fazia arroz-doce nos conventos, mas não o vou integrar na matriz da doçaria conventual.

 

A sua força, o seu poder, advém-lhe dessa presença obrigatória nas mesas portuguesas! Uma força que o leva a todas as mesas. O arroz-doce, possivelmente, é uma herança dos mouros que habitaram o território antes da independência de Portugal. Aliás, ainda hoje encontramos em todo o Magrebe receitas algo semelhantes às nossas.

 

Ingredientes simples e fáceis de identificar criaram uma variedade de receitas que permitem estabelecer um percurso por todo o país e entender as variantes da vasta gama de arroz-doce. E comecemos pelo produto fundamental, o arroz, que tem que ser carolino. Depois vem o leite, a água, o açúcar, a canela, as gemas de ovos, a casca de laranja ou limão. Há ainda um produto que infelizmente está a cair em desuso: a água de flor de laranjeira, ou a água de rosas que tanta delicadeza lhe dá.

 

A variedade do inventário das receitas de arroz-doce é consequência da utilização de alguns daqueles ingredientes, e pela proporção diferenciada na confeção. Há genericamente quatro grupos de arroz-doce: cozido em água ou em leite, e com ovo e sem ovo. No oriente, o arroz sempre simbolizou a fertilidade e, talvez por isso, é utilizado em chuva simbólica no final das cerimónias de casamento.

 

Mas de onde lhe chega a força, poder natural, que o obriga a chegar tantas vezes à mesa? Segundo A. da Silva Mello, em “Alimentação Instinto Cultura” (1946), o que é de importância capital é o fato do senso gustativo, da sensibilidade do paladar, assim como do olfato serem capazes de atingir regiões talvez definitivamente fechadas à pesquisa científica… O olfato, o paladar e a visão agiriam então como reguladores… Ora estamos perante efeitos emocionais que têm garantido as tradições. O simples facto de citar o arroz-doce traz ao imaginário a nossa memória afetiva!

 

Mas se essas emoções determinam a obrigatoriedade da sua presença na mesa, também Massimo Montanari, em “Histórias da Mesa” (2016) vem explicar que a partir da Idade Média era necessário mostrar que…o alimento do senhor não é apenas para ser consumido mas também (e talvez principalmente) para ser mostrado, exibido como forma de opulência ou de poder. Não é, portanto, de estranhar que surjam com frequência verdadeiras artistas do desenho com canela!

 

Por isso vão surgindo receitas de variações que pretendem afirmar a diferença. Perto de Viana do Castelo faz-se com açúcar em pó que lhe dá outra textura; uma raridade é um arroz-doce de Vila de Rua, freguesia de Moimenta da Beira, que é o arroz-doce de cesto, colocando-se o arroz, depois de confecionado e ligeiramente arrefecido, num cesto de verga previamente forrado com uma alva toalha de linho; de Coimbra vem uma tradição invulgar associada ao arroz-doce: a família da noiva participava o casamento às famílias amigas, oferecendo uma travessa de arroz-doce coberta por toalha de tecido de almalaguês, de produção artesanal. Passados uns dias, a travessa era devolvida com o presente de casamento; e em Palmela é feito um arroz-doce com leite e ou manteiga de ovelha que lhe dá um sabor diferente, mas inesquecível.

 

Ora, quem poderia preparar as travessas de porcelana e cobri-las com almalaguês? Quem tinha posses e poder! Já em muitas festas abastadas, o arroz-doce poderia ser diferenciado. A mesa dos noivos era um preparado especial, chamado de arroz-doce rico, muito açucarado e com gemas... Os restantes convidados poderiam comer um mais comum ou menos elaborado.

 

Mas poder, ou a força da sua emoção, está bem relatada no romance “O Prato de Arroz-Doce”, de Teixeira de Vasconcelos (1983) quando a José Alves, no seu leito de morte, lhe apresentam um prato de arroz-doce, tendo murmurado: “Estes atos consolam e restauram, não abatem”. Ao que o médico lhe disse: “O arroz-doce está aqui. Pode tomar três ou quatro colheres”. Depois de José Alves ter provado e repetido, exclamou: “Rosa está aqui! Só ela faz arroz-doce como este! Não ma escondam! Quero vê-la antes de morrer”.

 

É a obrigatoriedade de aparecer na mesa que lhe dá poder! É essa forma de estar sempre presente que lhe dá reconhecimento. Verdadeiras memórias de conforto emocional. São as autênticas artesãs que o confecionam ao seu jeito e que, por isso, são reconhecidas. Casamento sem arroz-doce não vale. Restaurante português sem arroz-doce fica incompleto! Felizmente há também uma nova geração que usa o arroz-doce como elemento de composição de sobremesas. Não estará perdida a tradição arroz-doceira!

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