Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: Vinho natural

17 de fevereiro 2021 - 09:40

As modas, pelo seu grande poder de influência, sujeitam os seus interlocutores a lugares comuns de absorção simples. Incomoda-me este seguidismo cego, a incapacidade de ter vontade própria, o desinteresse pela descoberta da diferença. Esta conversa vem a propósito das novas modas que têm vindo a galgar terreno, e a conquistar cada mais adeptos, que partilham a natural tendência de ir “beber” chavões que jorram da fonte dos lugares-comuns. Um dos mais recentes e mediáticos afirma, com a maior das certezas, que os melhores vinhos são oriundos de práticas enológicas menos interventivas, os chamados “vinhos naturais”. Segundo esta visão, o enólogo não passa de um mero observador da obra divina da Natureza, que se assume como o verdadeiro Jesus Cristo na última ceia, que promove o milagre da transformação da água em vinho.

 

São poucos os enólogos e produtores que não alinham, pelo menos publicamente, por este diapasão afirmando ser os vinhos “naturais” aqueles que expressam verdadeiramente o ‘terroir’, os tais vinhos de lavra, que por dispensarem os “químicos” são os mais puros. A ser verdadeira tal premissa, os melhores vinhos nasceriam da obra e graça de Deus, restando ao enólogo o mero papel de observador dos “humores” da natureza, de mero tutor dos frutos da vinha. Como se de uma bela narrativa romântica se tratasse, o quadro é de um lirismo encantador; o único problema é quando se tenta fazer a aproximação à realidade.

 

Se fizermos o exercício de deixar de lado o proselitismo barato, os romantismos da intervenção mínima não servem absolutamente para nada. A afirmação poderá chocar os espíritos mais sensíveis, mas os vinhos chamados “naturais” não existem, porque ele não se faz sozinho, não resulta somente da generosidade da natureza, é produto da criação intelectual do homem. Sem intervenção iríamos ter puro vinagre, e não vinho. Existe, logo de seguida, a feroz acusação aos produtos de vinhos “artificiais e industriais” pelo recurso abusivo à utilização do veneno dos químicos. No entanto, se perguntarmos aos apologistas do intervencionismo mínimo o que utilizam na vinha e na adega, respondem que só recorrem, por vezes, ao cobre e ao enxofre. Então o cobre e o enxofre não são químicos, ou existem os chamados químicos bons e os químicos maus?

 

Será que gostar de vinhos límpidos, bem feitos e que dão prazer a beber é agora pecado?

 

Quem quer jogar no fio da navalha está no seu direito, quem quer fazer vinhos com defeito e o quer fazer passar por virtude também o pode fazer; no que me toca, não quero sofrer uma reação de pele por provar vinhos com uma acidez tão corrosiva que fazem chorar as minhas papilas gustativas, nem terei de ficar maravilhada com um rosé escuro e agressivo. Até vou mais longe, tenho o direito de recusar um vinho que saiba mais a cerveja ou a cidra. Haja paciência.

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