Diário do Alentejo

À Mesa: Libertar os sentidos na Cadeia Quinhentista

10 de janeiro 2021 - 17:40

Texto António Catarino

 

No sublime território alentejano, Estremoz mantém identidade muito própria, singela como o branco marmóreo das pedreiras; orgulhosa dos tempos em que era praça-forte muito difícil de conquistar. Hoje, é Estremoz que conquista, facilmente, o visitante. É uma cidade, a caminho do centenário desse estatuto, que surpreende. E que, literalmente, prende pela boa mesa.

 

O restaurante Cadeia Quinhentista, instalado num edifício do século XVI, mesmo ao lado do castelo e da Igreja de Santa Maria ou Matriz, é um espaço cativante. Fica-se preso, desde logo, pela arte de bem receber do anfitrião, João Simões, que há alguns anos teve vontade e coragem para libertar do abandono e esquecimento a que estava votado um dos edifícios que faz parte da memória coletiva de Estremoz.

 

A tarefa foi penosa e demorou dois anos. Exigiu investimento avultado para voltar a insuflar vida, vai para década e meia, na velha prisão, a única de traça manuelina, construída em mármore e de onde o último preso saiu em 1970. A traça medieval manteve-se e o respeito pelos detalhes com total aproveitamento de peças originais enobreceu o belíssimo trabalho realizado.

 

A cozinha ocupa hoje a cela solitária; no piso superior, o bar, com lareira acesa nos dias frios, preencheu o espaço da cadeia feminina; em cima, o terraço, esplendoroso pela arrebatadora panorâmica, que permite ter a sensação de avistarmos todo o Alentejo.

 

No piso térreo, duas salas onde impera o bom gosto: uma retangular, com um janelão no topo e um buraco nas grades, consequência da engenhosa fuga de um preso; outra, mais pequena, apresenta uma particularidade: era a cela dos presos problemáticos e tem um buraco no teto. Por ele descia o tacho com as refeições. Tudo continua ainda a funcionar assim: basta marcar, para duas pessoas, a mesa é a número 19.

 

Amesendação requintada, cadeiras em ferro construídas por artesãos locais. A ementa baseia-se no receituário tradicional, trabalhado com saber; o empratamento é moderno, sugestivo, atraente. Os enchidos tradicionais, com destaque para a linguiça cozida em vinho tinto, são introito ideal para abrir caminho à sopa de cação. Em alternativa, cação frito com alho e pimentão da horta, com amêijoas e migas de batata. Na vasta ementa podem figurar as icónicas pataniscas de enchidos de porco preto com legumes assados no forno em azeite e ervas aromáticas, e a perdiz suada em azeite com castanhas, espargos verdes e romã. Um prato emblemático, de confeção demorada – sete a oito horas -- divinal pelo sabor.

 

Outras sugestões: borrego assado servido em fatia de pão e medalhões de lombo de porco preto no carvão com migalhada de espargos bravos.

 

Na doçaria, é impossível resistir ao pastel de toucinho ou ao premiado pudim de água, que nunca é batido, mas sim mexido lentamente. Duas receitas originárias do antigo convento local das Maltesas e um segredo que não ficou preso na Cadeia Quinhentista, onde qualidade, requinte e história libertam os sentidos.

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