Diário do Alentejo

Ana Militão: Coragem

19 de abril 2020 - 10:45

“Passados muitos anos, parei em frente ao espelho, senti algo como se o espelho quisesse falar comigo e me dissesse: chega de arranjares desculpas e faltas de tempo. Tens de olhar para ti… Olhei o espelho mais um pouco e, nesse preciso momento, calcei uns ténis, vesti roupa confortável e fui para o campo caminhar. Primeiro em passo lento, depois mais apressado e, por fim, comecei a correr. Gostei, repeti no dia seguinte, no outro e no outro, até se tornar um vício. O meu vício”.

 

Texto e foto: Fírmino Paixão

 

Ana Militão nasceu, há um “par de anos”, na vila de Beringel, a capital sul alentejana da olaria, onde continua a viver. Casada, mãe de um casal (o Pedro Paulo e a Ana Maria), teve uma infância que diz “repleta de bons momentos, que guardo com carinho e conto como histórias nos serões familiares. Irrequieta e traquina, eram os ingredientes perfeitos para todos os dias levar uma valente sova da minha mãe. Mesmo assim, recordo com saudade esses tempos”. Define-se, e é uma verdade absoluta, como uma pessoa humilde, simpática. E muito corajosa, acrescentamos nós, “Nunca entro em confronto com ninguém e pouquíssimas vezes perco a paciência”. O percurso académico começou na sua terra natal e continuou em Beja. Ana Milhão lembra que o desporto esteve presente até ao 12º ano de escolaridade. Depois foi “o tempo de esquecê-lo e arrumá-lo numa gaveta e passar a dedicar o tempo aos outros, à casa, ao trabalho… esquecendo-me completamente de mim”. Foi então que o tal olhar ao espelho mudou o seu comportamento. Tal como os artesãos, da sua terra natal, dão diferentes formas ao barro, também a Ana decidiu modelar os seus hábitos de vida. Começou pela corrida, motivada pelo lazer e pelo contacto coma natureza. O seu exemplo enraizou, deu frutos, e foi então que, mais adiante, quando se começou a ouvir que Beringel “estava na moda”, que se formou a equipa Terras de Barro no União Cultural e Desportiva Beringelense. “Comecei a representá-lo em provas de trail, corta-mato, estrada, montanha.

 

Tenho alguns títulos e pódios. Comecei a conhecer atletas e a fazer amizades, a distribuir beijos e abraços. Eram estes os meus prémios, sem ligar a tempos, nem a adversários”. Nessa altura, mesmo sem olhar a prémios, conquistou os títulos de campeã distrital de estrada, de corta-mato e de montanha e campeã do Alentejo de corta-mato, no seu escalão e com a camisola das Terras de Barro. Lançada no atletismo, Ana Militão não ficou por aí. Contou que outro dos seus vídeos é o BTT, “uma modalidade principalmente praticada só por homens”, sublinha. “Apresentava-me sozinha, envergonhada, mas nunca deixei de participar, nunca deixei que a vergonha e a timidez fossem mais fortes do que eu. Sempre fui muito acarinhada, fui vencendo barreiras e criando amizades. O BTT dá- -nos uma liberdade sem explicação, mas sempre por lazer, nada de competição. Ainda hoje, a bicicleta é o meu meio transporte do trabalho para casa”. Apesar de reconhecer que não tem sido fácil conjugar o atletismo, o BTT, os treinos, a família e a casa, decidiu dar outro colorido à sua atividade desportiva, deixando-se encantar pelo vermelho e preto do Beja Atlético Clube (BAC). “Sim, conheci os fortíssimos atletas desse clube e nasceu ali uma amizade inestimável. Foi com eles que me estreei no campeonato nacional de corta-mato, em Lisboa, e surgiu o convite para integrar a equipa. Concordei, e ganhei consciência do que é uma prova e do valor de cada uma. Não sou atleta de velocidade, mas esforço-me e descobri que sou mais forte do que acreditava ser possível. Coloquei em prática a minha capacidade de ir mais além, tentei superar-me e consegui. E hoje adoro os mocinhos do BAC. Um abraço gigante a todos eles, principalmente ao presidente João Cruz, que estou, constantemente, a chatear”. Nesta época, já no novo clube, continuou a ser bem sucedida: vice-campeão do Alentejo de corta-mato, campeã distrital de corta-mato curto e de corta-mato longo e 16ª classificada no campeonato nacional de estrada, disputado no Jamor, em Lisboa, no escalão de veteranos 50.

 

Mas todos temos os nossos dias, e num deles, Ana Militão postou numa rede social a frase “farta de ser mulher”. O que foi aquilo, Ana? “Foi um desabafo” explicou, “um desabafo que me saiu e que não tem nada a ver com falta de coragem. Continuo a mesma guerreira e gosto de ser mulher (teve a ver com elogios e eu, com isso, não sei lidar)”. A atleta é operadora de caixa numa grande superfície comercial e, neste período de pandemia, está muito exposta a contágios, algo que, nos tempos que correm, exige coragem e serenidade. Mas a Ana sabe que o coronavírus “espreita cada um de nós, para ver onde nos pode atacar. Estou na linha da frente, receosa, mas com a calma suficiente para transmitir confiança às pessoas e sobretudo boa disposição aos clientes”. O que terá então mudado na sua vida desde que se olhou ao espelho naquele dia que marcou todo o seu percurso? “Sou uma pessoa bem resolvida, penso pela minha cabeça e faço as minhas escolhas. Tenho liberdade para fazer o que quero. Tenho consciência que o nome Ana Militão saiu do anonimato e que o meu exemplo é motivador para outras pessoas. Vou continuar a correr e a fazer BTT até que a saúde me permita”. Para trás tem ficado um tempo gratificante. “Sim, esta caminhada não foi fácil, mas a recompensa de viver num corpo que amo fez com que valesse a pena. Eu mudei por mim própria. Sou feliz à minha maneira. Um conselho: muda por ti, não esperes um comentário menos doce, para mudares. Muda, transforma-te, mas sempre por ti, sem esqueceres a tua essência”.

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