Diário do Alentejo

Fernando Mamede: recordista

08 de agosto 2019 - 11:00

Texto e Foto Firmino Paixão

 

“Sinto-me feliz pela forma como a minha cidade me tem retribuído a projeção que lhe dei, pelo país e pelo mundo. Tenho um complexo desportivo com o meu nome, agora também uma prova desportiva, mas sei que não lhe pude dar aquilo que seria o meu desejo. Na época, se existisse aqui uma pista e eu pudesse vir a Beja fazer uma grande marca nos 10 000 metros, teria feito isso, como fiz, sozinho, em várias partes do mundo. Mas não existia aqui nada, e eu não sou o culpado disso”.

 

Fernando Mamede nasceu em Beja, na rua da Casa Pia, no primeiro dia de novembro de 1952, Dia de Todos os Santos. Aqui cresceu, aqui viveu, fez-se homem e atleta, primeiro futebolista, mais adiante um fundista de eleição, até deixar a sua cidade para procurar um sonho.

No livro O Recordista, uma biografia assinada por Jorge Vicente, editado pela Sete Caminhos em setembro de 2004, Fernando Mamede revela-se desta maneira: “Era um miúdo muito irrequieto”. Conta várias peripécias dos seus primeiros anos de vida, sendo certo que essa sua espécie de hiperatividade também não escondia uma enorme predisposição para o desporto. Mamede revela até que a rua da Casa Pia era o seu mundo, o seu espaço de liberdade, onde ele e outros miúdos da sua idade recriavam os grandes acontecimentos desportivos da época, como os mundiais de hóquei em patins ou as voltas a Portugal em bicicleta. “Corridas com guiadores feitos de arame e números pregados nas costas que mais não eram do que verdadeiras provas de atletismo, porque bicicletas era coisa que ninguém possuía naquela rua”, diz o bejense. Veio a escola. Primeiro o ensino básico, mais à frente a Escola Industrial e Comercial de Beja, onde ainda hoje regressa para os encontros de antigos alunos. Mas este fundista de gabarito esteve quase a perder-se para o futebol. Ele e outros jovens da sua turma, tecnicamente mais apetrechados, jogavam futebol de rua e decidiram alistar-se no Despertar.

Fernando Mamede recorda que no momento dos exames de aptidão médica, para praticar futebol, “o dr. Lopes Vasques fez-me a auscultação torácica e disse-me ‘está aqui um grande fundista’. Foram palavras que eu nunca esqueci na minha vida e, quase sem querer, o meu destino foi esse”. Destaca que, em termos de prática desportiva, “faziam-se umas coisitas no desporto escolar, era aí que tínhamos possibilidade de praticar atletismo e, curiosamente, foi aí que eu fui descoberto”. Mas essa descoberta, contou-a o saudoso Mário Moniz Pereira, no prefácio de O Recordista. E reza assim: “Na primavera de 1968, lendo os resultados dos campeonatos escolares de atletismo no distrito de Beja, fiquei muito admirado por o vencedor da corrida de 1000 metros ter feito o tempo de 2’38s. Para um principiante, com 17 anos, era uma proeza. Só descansei quando o Sporting conseguiu entrar em contacto com a família dele, para autorizar a sua inscrição”. E assim nasceu uma estrela com os sucessos que se conhecem e que perdurarão eternamente na história do desporto português.

Quando instado a comparar o atletismo desses tempos com o da atualidade, foi perentório: “Não tem comparação possível. No meu tempo não existia quase nada. Não existia nenhuma associação de atletismo nesta região, só passados muitos anos, em finais da década de Oitenta, surgiu a Associação de Atletismo de Beja. Assim já se trabalha de outra maneira, naquele tempo não havia treino específico, a minha preparação básica era correr até à Boavista e voltar”.

A sua paixão pela à modalidade permanece intacta, mas, aos 66 anos, limita-se basicamente a comparecer em provas que se realizam um pouco por todo o País, correspondendo aos convites que as organizações lhe endereçam. “A prova que o município de Beja promove, naturalmente, que está em primeiro lugar para mim, como é lógico. É a prova da minha cidade. Lamento nunca ter corrido aqui, mas isso são ‘contas de outro rosário’. Mas sempre que me pediram para ajudar a promover as provas na região, eu acedi de imediato”. E dá o exemplo do Grande Prémio das Neves. “Estou disponível para apoiar outras iniciativas ligadas a este desporto e fico feliz porque, hoje em dia, não é só o atletismo que está projetado em Beja, é o basquetebol, o andebol, a natação, o hóquei, enfim, vários desportos que, naquela altura, não se praticavam em Beja e que atualmente existem. É excelente. Tudo o que faça com que as crianças tenham atividade física é brilhante”.

Mamede olha, por vezes, para o passado e, por isso, confessa: “Sentimos sempre saudades das coisas boas que fizemos, mas temos é de viver o presente e olhar para o futuro. Felizmente tenho saúde, e é isso que faço, vou vivendo cada momento do presente e esperando que o futuro também me possa dar alguma esperança”. Mas sabe que, entre tantas vitórias, entre tantos recordes, talvez tenha ficado a dever a si próprio outros momentos de glória. “Na verdade fiquei a dever a mim próprio algumas medalhas. Tenho um feitio um bocado complicado para as medalhas. Não conseguia alhear-me daquilo que era a obrigatoriedade de ganhar e, quando eu sentia essa obrigação, bloqueava. Porquê? Não sei, teria um pouco a ver com a parte psicológica mas, naquela altura, não havia psicólogos na área desportiva. Neste momento há tudo, há técnicos de todas as especialidades, capazes de preparar e de recuperar os atletas, mas eu, na minha altura, não tinha nada”, lamenta o recordista.

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