Diário do Alentejo

O trabalho que não se vê

27 de maio 2022 - 14:50
“O Ourique dá-lhes a oportunidade desta caminhada bonita, mas ao fim ao cabo elas próprias também estão a dar muito ao Ourique, levando o nome do clube mais além”

Antes do último jogo da 2ª fase da Série Sul que ditará um dos finalistas do Campeonato Nacional de sub-19 feminino, o “Diário do Alentejo” foi conhecer o percurso e o olhar daquelas que semanalmente entram em campo carregando a responsabilidade de serem a única equipa feminina da região na competição. 

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Os cones azuis, amarelos, verdes e laranjas, minuciosamente colocados no relvado, deixam antecipar o início de mais um treino da equipa sub-19 feminina do Ourique Desportos Clube. Entre exercícios de resistência, ensaios táticos e simulações de jogo, o “Diário do Alentejo” (“DA”) conheceu a história por trás do sucesso da presente temporada. Para a segunda fase do Campeonato Nacional, na série sul, a equipa levou a melhor prestação dos oito jogos disputados, com 49 golos marcados e três sofridos. “Nesta época, conseguimos ir a uma segunda fase só com vitórias e até agora nos cinco jogos que fizemos temos três vitórias, uma derrota e um empate. Esta é a primeira vez delas e minha numa segunda fase nacional, estamos a apanhar equipas como a do Marítimo que tem uma equipa na 1.ª liga e o Torreense que é sua adversária nessa mesma competição, e isso é algo novo. Temos de aprender, aproveitar, desfrutar ao máximo desta experiência e ir o mais longe possível”, assegura ao “DA” o treinador de 35 anos, Luís Caixinha

 

O percurso que têm feito é essencialmente fruto do trabalho de cada uma delas no individual que se traduz no coletivo. Semanalmente marcam presença no Estádio Municipal D.Afonso Henriques, quer em dias de treino, quer em dias de jogos, onde o companheirismo, a boa disposição e os sorrisos apaziguam as longas horas de estudo que já trazem consigo.

 

FAMÍLIA, UNIÃO E GARRA

Atualmente, empatadas com os mesmos dez pontos que o primeiro classificado, descendo para segundo lugar face à diferença de golos sofridos e marcados, acreditam que esta caminhada resulta da “relação de confiança” e de conhecimento de cada limite. Quando se perde é necessário entender o porquê daquele resultado para na semana seguinte se começar a trabalhar nos erros que foram cometidos, mas quando se vence é igualmente importante estudar “o que correu menos bem”. “Quando há vitórias, mesmo que os jogos não sejam tão bem conseguidos, tentamos perceber o que correu menos bem, quais foram os erros cometidos e os motivos. Focamo-nos sempre em fazer melhor, por exemplo em vez de ganharmos por um, tentarmos ganhar por dois ou em vez de deixar o adversário rematar duas vezes, não deixar rematar nenhuma”, explica o treinador. Assim, o foco da equipa passa sempre por “ter um objetivo mais acima do que o que tínhamos antes”, independentemente de se ter acabado de golear a equipa adversária.

 

De jogo para jogo o foco está no trabalho e na adaptação mútua entre cada uma das jogadoras que tem a responsabilidade de saber de antemão “o que cada colega tem de fazer, os seus pontos fortes e fracos e o que cada equipa adversária pode vir a meter dentro do jogo ao nível da estratégia”. Mas também do papel da equipa técnica de conhecer cada uma das atletas, os seus feitios e dias para que em conjunto se consiga encontrar a “posição e as funções favoráveis para cada uma”. Aqui também a família é chamada a intervir. O olhar de quem está de fora, que assiste e tem diferentes visões do mesmo jogo é o complemento, muitas vezes imprescindível e o impulso necessário para o sábado seguinte. “A primeira coisa que faço após os jogos é falar com os meus pais e pedir a opinião e a perceção deles. O meu pai diz-me mais os pontos negativos, porque percebe mais e é mais critico e assim consegue ajudar-me. Depois uso isso e nos treinos tento melhorar esses aspetos”, conta Maria Guerreiro, avançada do Ourique e melhor marcadora do campeonato.

 

360 QUILÓMETROS PARA TREINAR

O Ourique Desportos Clube, na presente época, é o único que apresenta no Alentejo uma equipa exclusivamente feminina neste escalão e nas competições nacionais. A falta de oportunidades, rivalidade e competição na região tem condicionado as jovens atletas a seguirem, assim como acontece com os rapazes, o seu sonho de jogarem futebol. A maioria das jogadoras da equipa, oriundas de Beja ou de aldeias vizinhas, faz semanalmente cerca de 360 quilómetros para conseguir marcar presença nos treinos de segunda, terça e quinta-feira à noite. “O Ourique deu-nos uma grande oportunidade, porque se não fizessem equipa praticamente muitas de nós não podíamos jogar, tanto por causa da idade, como por causa dos sítios onde vivemos”, afirma a lateral-esquerda, Lara Filipe. A jovem de 16 anos realça ainda que o sucesso desta época é uma consequência não só da dedicação do clube, mas fundamentalmente da energia desta equipa que mantém o ânimo e a confiança, dia após dia, ao defrontar de igual para igual equipas com um grande e forte historial no futebol feminino.

 

O percurso que estas jovens, entre os 15 e os 19 anos, têm percorrido nas últimas três temporadas tem deixado marcas e servido de exemplo para a modalidade na região. Numa zona com débeis acessibilidades, falta de recursos e poucos investimentos, os valores que no Alentejo se praticam, como a humildade e o gosto por trabalhar, aliados “ao esforço, ao empenho e sacrifício da parte delas e dos clubes” certamente será lembrado como o início “de algo bonito”. Os bons resultados alcançados têm sido reconhecidos e a prova disso é a chamada à Seleção Nacional de seis jogadoras. “Para nós [equipa técnica e direção] a chamada de algumas jogadoras à Seleção Nacional, é o culminar do esforço, do empenho, da deslocação que fazem em quilómetros quatro vezes por semana, de se levantarem cedo para ir para a escola e muitas delas depois de terem aulas práticas em desporto virem treinar e jogar dando o máximo e ainda conseguirem ganhar com alegria. Quer nós queiramos, quer não, somos uma equipa do Alentejo com menos visibilidade e as chamadas à Seleção são a cereja em cima do bolo”, remata visivelmente orgulhoso Luís Caixinha.

 

“ESPERO QUE PARA O ANO CONSIGAMOS FAZER EQUIPA PARA CONTINUAR A DAR FRUTOS NO FUTEBOL”

Ainda faltando um jogo decisivo para conhecer o desfecho desta época, não se perspetiva o futuro. Os olhos estão focados nos 90 minutos que ainda estão por jogar e a principal preocupação é controlar as emoções do que estará por vir. Luís Caixinha e Rui Ramos, treinador-adjunto, sabem que, pela idade e maturidade no futebol, há quem ainda se deixe deslumbrar com o que poderá acontecer nos próximos dois jogos da última jornada. O Ourique Desportos Clube não depende só dele, precisa sobretudo que o Torreense deslize com o Marítimo e por isso até ao momento é preciso “cabeça” para gerir o jogo de sábado dentro e fora de campo. “[Temos de] gerir as emoções de forma suave, passar-lhes as responsabilidades aos poucos, falar com elas abertamente sobre o que pode ou não acontecer para não haver ilusões. Aqui umas entendem melhor porque são mais velhas e já têm 18 e 19 anos, outras, as mais novas, tem menos os pés no chão. Mas de um modo geral é tentar passar-lhe a responsabilidade a elas, porque ao fim ao cabo o mérito é delas”, completa o treinador.

 

Neste momento apenas existe uma certeza entre as 15 jogadoras do Ourique: independentemente do resultado final desta temporada é necessário e imprescindível que o clube continue nas próximas épocas a apostar no futebol feminino na região, porque “esta equipa feminina trouxe motivação para muitos outros clubes, somos um exemplo para as camadas jovens e acredito que aqui na região a modalidade será a aposta a partir de agora”, crê Lúcia Mateus, defesa-central de 18 anos. Por fim, também a sub-capitã está confiante quanto ao papel que ela e as suas colegas têm desempenhado para o Alentejo. “Sinto um orgulho imenso, este ano temos como objetivo ir à final e tentarmo-nos sagrar campeãs nacionais. Este é o meu clube de sempre, o clube da minha terra e ter visto a evolução que tem vindo a acontecer no futebol feminino de ano para ano é sem dúvida uma grande honra, principalmente, aqui na região onde é muito difícil. Espero que para o ano consigamos fazer equipa para continuarmos a dar frutos no futebol”, conclui a médio-centro, Sofia Caraça.

 

Por agora, acalmam-se os corações de quem não consegue controlar o futuro, de quem apenas tem de fazer a sua parte com um “futebol bonito” e esperar pelo destino. O Ourique Desportos Clube tem encontro marcado amanhã pelas 16:00 horas em Almeirim, onde, mais do que nunca, a família que as une e a garra têm obrigatoriamente de aparecer entre as quatro linhas.

Comentários