Diário do Alentejo

O que é hoje o comer? Caldeirada de ovas de saboga

06 de junho 2025 - 20:00
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Sérgio Valente 50 anos e Sofia Valente 43 anosPenha D’Águia, Mértola

 

Texto | José SerranoFoto | Ricardo Zambujo

 

Navega o “Zorrão” pelas tranquilas águas do Guadiana, no seu caminho para sul, em busca da foz. No espelho que medeia as suas margens, as duas distando uma boa centena de metros, imprimem-se à tona ondulantes oliveiras, romãzeiras, amendoeiras, marmeleiros, “pés” de videira, de melancia e de abóbora, reminiscências botânicas domésticas, testemunhas da estimável presença humana de outrora, em que as hortas cultivadas se alinhavam, ali, nas encostas ribeirinhas, umas a seguir a outras. “Eu nasci em ‘75’ e nessa altura existia ainda muita gente a semear, todos tinham um bocadinho para cultivar junto ao rio – que era ‘a estrada’” –, sublinha, aludindo à importância comercial do curso navegável, Sérgio Valente, o timoneiro da lancha que avança lentamente por entre os simétricos sulcos de água que a sua proa rasga.

 

“Nos Anos 80 ninguém aqui tinha carro ou motorizada… não se precisava, porque, para além de um ‘caminho de cabras’, não havia estrada até aqui, à Penha D’Águia, e vivia-se com os burritos, com as carroças e com os barcos – queria-se ir às compras, aproveitava-se a maré e ia-se até Mértola”, rio acima.

 

Facilmente localizáveis pelas boias brancas que as seguram às águas, aproximamo-nos das redes de tresmalho lançadas na noite anterior. Nas suas malhas encontram-se enredadas sabogas (Alosa fallax), cuja migração do mar para o rio, para “desovarem”, entre “o fim de abril e um bocadinho de junho”, marca a comida típica da região. “Não haverá casa nenhuma aqui no concelho em que não se coma saboga e, especialmente, as suas ovas, que toda a gente aprecia muito”. Há, por isso, que aproveitar, enquanto é altura, de tão efémero manjar, de preferência acabado de vir do rio, tal como se serve n’ “O Pescador do Guadiana”, nome que alude, homenageante, aos poucos que ainda resistem ao apelo da arte – “daqui somos três os que continuamos a deitar as redes” – e aos muitos que existiram outrora. “O meu pai era o melhor pescador do rio (desde criança que o acompanhei) e chegou uma altura em que senti que havia uma responsabilidade de continuação, que o que os nossos antepassados nos ensinaram não se poderia perder…”, manifesta orgulhoso, enquanto passamos pelo vertical e imponente rochedo que dá nome à povoação, navegando, agora, em sentido contrário, rumo ao cais.

 

Do “Zorrão” descarrega-se o peixe acabado de apanhar. “Hoje foi um bom dia de pesca”, realça Sérgio Valente. “A saboga ainda entra em quantidade e as suas ovas atraem as enguias, o peixe mais inteligente e matreiro do rio, que nesta altura também se apanha mais. Se não fosse a saboga, se calhar, já não havia pescadores… a lampreia tem vindo a diminuir muito… nós transformámos o rio, fizemos o Alqueva e com a barragem foram introduzidas espécies invasoras que não existiam aqui. Peixe-gato, lúcio-perca… o caranguejo azul, que ninguém sabe de onde é que apareceu e que em chegando o verão não se pode pôr nada na água, porque as redes vêm minadas deles”.

 

Desfrutando de uma merecida “mini” fresca, que apazigua o inclemente calor alentejano do meio-dia, é tempo, agora, de arranjar o peixe acabado de apanhar. De abrir delicadamente, com uma faca afiada, as suas barrigas, para delas lhes retirar, incólumes, as ovas. De o cortar, de seguida, em finíssimas postas, que irão a fritar, fazendo as delícias, como entrada, dos clientes do restaurante à beira do Guadiana, que Sérgio Valente, seu proprietário, afirma ser “diferente”, por não ter dias fixos de abertura, privilegiando a exclusividade dos produtos frescos e a sua sazonalidade. “Tem de ser por marcação, não podemos estar a abrir a porta sem saber se vêm dois, se vêm 20 ou se não vem ninguém… estragar comida está fora de questão… isto são coisas de época e há que aproveitar tudo ao máximo, porque rapidamente se acabam… daqui a nada já não há saboga e não havendo saboga não há enguias. E quando há lampreia é a mesma coisa – não nos vamos pôr a cozinhá-la se não soubermos que há clientes”.

 

Fregueses, que são recebidos, durante o ano inteiro, de forma singular. “Este restaurante é quase a minha casa, é assim que recebo as pessoas, cada cliente vai sendo um amigo. Isto aqui é para se vir com vagar, para desfrutar da nossa comida, da paisagem, para beber um copo e cantar uma moda… quem quiser aproveitar a vida vem aqui à Penha D’Águia e sai daqui curado – é melhor do que ir a Fátima, perdoem-me a comparação”, exalta, sorridente. Passamos agora à cozinha do restaurante, até onde Sérgio Valente leva as ovas, acabadas de ‘capturar’, a Sofia, sua mulher, que as recebe, esfregando-as em sal e reservando-as. Destas, servirão algumas para fazer saladas frias, próprias do tempo, sendo que a maioria será protagonista do prato principal daquele dia – caldeirada de ovas de saboga.

 

Uma receita que se inicia com cebola e alhos picados e pimentos encarnados “cortados aos bocadinhos”, tudo regado com azeite, aquecido “em lume médio” dentro de uma panela. “É um prato muito fácil de fazer, igual às caldeiradas com outros peixes, só que esta leva ovas”, com a vantagem, “de não ter espinhas”, diz a cozinheira do restaurante, que não reivindica companhia entre os tachos. “O que eu gosto de fazer é cozinhar, dá-me calma”, diz, considerando que para se ter sucesso culinário, para além de “boa mão”, é indispensável o amor dedicado à gastronomia local.

 

Depois de a cebola alourar, junta-se ao refogado o tomate, em troços e em polpa, a salsa picadinha, uma folha de louro e os orégãos – “experimentei uma vez pôr orégãos e gostei do sabor, agora ponho sempre…temos que inovar”. Com uma colher vai-se misturando tudo – “tem que se estar sempre a mexer, para não pegar” – e após o fundo começar a borbulhar junta-se a água. Levantando fervura, acrescentam-se, “ao mesmo tempo”, as batatas cortadas às rodelas e as ovas. “Agora é esperar que tudo coza”, não se podendo servir, após apagar o lume, sem antes se esperar “uns 10 minutinhos”, para se apurarem todos os sabores. “O peixinho é fresco e bem confecionado e quem prova este prato geralmente volta cá para repetir – será porque o comer não é assim muito mau”, diz Sofia Valente, gracejando.

 

À comprida varanda do restaurante, onde já se “pica”, prazenteiramente, a salada de ovas, a saboga frita e os cozidos caranguejos azuis, chega agora a caldeirada, com o fumo quente de odores perfumados a escapar por entre as frinchas da tampa do tacho de barro vermelho, pondo “em sentido”, antecipando a experiência gastronómica, quem está sentado na esplanada sobre o rio. A cada colherada fumegante repetem os convivas elogios à cozinheira, por tão sublime prato, e vénias ao pescador, por perpetuar a possibilidade de nos deliciarmos com as oferendas do rio. Corre o Guadiana na sua demanda interminável até à foz, embalado pelo tilintar dos brindes, com fresco vinho branco da região, e por um moda alentejana, cantada espontaneamente em uníssono, nascida da satisfação proporcionada pelos verdadeiros sabores autóctones e pela sua capacidade de dar continuidade à feliz confraternização à volta da mesa.

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