Diário do Alentejo

Crónicas do cante: Os grandes espetáculos de cante no Pavilhão dos Desportos (1952 e 1965)

10 de fevereiro 2025 - 08:00
A importância dos arquivos na preservação da memória

Texto | Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt

 

As crónicas que aqui se publicam, quinzenalmente, assentam em documentos encontrados nos arquivos dos grupos de cante ou em arquivos particulares. A partir desses documentos desenvolve-se uma pequena pesquisa que permita complementar a informação recolhida, por forma a contribuir para o enriquecimento cultural coletivo e também para a disseminação do conhecimento. Com esse propósito, são consultados imensos documentos, aparentemente credíveis, do ponto de vista científico e académico. De forma a que se (re) escrevam pedaços da história do cante, com base em fontes fiáveis, tentando assim travar a produção escrita sob o tema, baseada em “achismos” ou em narrativas dúbias. Justifica-se esta explanação sobre a metodologia seguida na construção das crónicas na medida em que, no seguimento da crónica anterior, foi detetada uma incorreção, fruto da consulta de uma fonte que tinha informação errada. Assim, e depois de verificar a autenticidade do certificado enviado pelo leitor Mário Apolinário, de Serpa, corrige-se então que o 1.º classificado no concurso de 1952 foi o Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa e não o Rancho Coral de Vila Nova de São Bento, conforme adiantado na “Revista Lacant” n.º 6, pág. 25, 2024. Deste evento ressalta, uma vez mais, a importância do trabalho e propósito do Arquivo Digital do Cante em tentar salvaguardar toda a documentação possível dos arquivos particulares e dos grupos, por forma a que não se percam pedaços da história tão importantes. E só os papéis, e sempre que possível acompanhados por alguns testemunhos orais, poderão repor a veracidade dos factos. Principalmente quando se abordam eventos desta dimensão.

Recorde-se, pois, que assistiram ao espetáculo de 1952 no Pavilhão dos Desportos mais de 6000 pessoas, noticiava a comunicação social. O Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa, 1.º classificado, pernoitou na capital e no dia seguinte fez a viagem de comboio até Brinches, apanhando depois uma “camioneta” para Serpa, onde fez uma entrada apoteótica, sendo esperado por largas centenas de pessoas, “uma coisa sem explicação, inolvidável”, recorda o mestre Francisco Torrão, que integrava o grupo. Mas, se para “os de Serpa” tudo tinha corrido pelo melhor, já para “os de Pias” – rancho coral –, esta deslocação não correu de feição, uma vez que, para além dos seus versos não constarem no programa, o mesmo rancho coral foi desclassificado pelo “teor transgressivo dos ditos versos, sem paralelo nos restantes repertórios”¹. Para Melo (2020), foram os seguintes versos que terão levado a tal depreciação: “Levo as noites sem dormir/ pensando em ti meu amor/ eu não posso resistir/ linda rosa deixa-me ir/ p’ ra teu peito encantador” (“Rosa branca”); “Eu trabalho todo o ano/ para produzir o pão/ Não me dá o resultado/ meu lindo Alentejo/ Sôfro uma desilusão/ Vou-me embora p’rá cidade/ que o campo já me aborrece/ que eu lá na cidade tenho/ meu lindo Alentejo/ quem por mim penas padece”. A estes versos ter-se-á juntado também o poema de Romão Moita Mariano, que cometeu o crime, e quase foi preso, por se referir ao Alentejo como “Embora vivas esquecido”, recordam os seus familiares.

 

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Na década seguinte, estes encontros/concursos assumem ainda maior acuidade e envolvência artística, passando a designar-se de festivais. E é neste contexto que, depois da Festa Alentejana de 1937 e do Encontro de Cantadores de 1952, surge, em 1965, o III Grande Festival de Canto Alentejano, já com uma componente de variedades, inclusa no programa. No arquivo documental do Grupo Coral Os Arraianos de Ficalho está depositada documentação deste grande certame que teve lugar, uma vez mais, no Pavilhão dos Desportos em Lisboa. Desta feita, participando cinco grupos corais: Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, Grupo Coral “Ceifeiros” de Cuba, Grupo de Cantadores de Vila Verde de Ficalho, Grupo Coral de Reguengos de Monsaraz e Grupo Coral Misto da Casa do Alentejo “Eng.º Martins Galvão”.

O programa, composto por duas partes, e onde se pode verificar os temas apresentados por cada participante, alternava apresentações dos grupos de cante com variedades, onde atuavam nomes sonantes como Eugénia Lima, Tony de Matos, Madalena Iglésias, Simone de Oliveira e Trio Guadiana, entre muitos outros. Este formato de espetáculo repetir-se-ia em 1967, mas não sem antes surgirem outros formatos envolvendo também os grupos folclóricos da região Alentejo, nomeadamente, o Rancho Folclórico do Cano (Sousel), o Rancho Folclórico Fazendeiros de Montemor-o-Novo e o Rancho Folclórico de Castelo de Vide, todos advindos da década de 50 do século XX.

 

¹Melo, D. (2020). “‘Um povo, uma cultura, uma região’: a história exemplar da Casa do Alentejo”. “Trabalhos de Antropologia e Etnologia”, 45 (1-2). Obtido de https://ojs.letras.up.pt/index.php/tae/article/view/9874

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