Diário do Alentejo

A Sereníssima República das Verdades Absolutas e Universais

02 de fevereiro 2025 - 08:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula Figueira 

 

Em 2050, a República de Geia, o estado mais antigo do mundo, situado num enclave nos Montes Apeninos, representava o último reduto da civilização lógica e racional.

Autoproclamava-se “Terra da Liberdade”, tal como fora marcado, a ferro e fogo, num orgulhoso letreiro de boas-vindas, replicado em todos os locais públicos de paragem, de pausa, de descanso e de observação. Esta “máxima” nasceu na sequência da reconstrução do mundo, após a Grande Hecatombe do Logro e da Hipocrisia, a catástrofe global que durou cerca de dois anos e que quase devastou a Humanidade. Nesse período, a polarização ideológica, a intolerância e o individualismo exacerbado, fortemente alimentados pela desinformação e pelo desinteresse das pessoas pela manifestação de interesse, assumiram proporções sem precedentes, de tal modo que conduziram a uma realidade de isolamento e de colapso dos valores coletivos.

Quando se estava a reerguer, na tentativa de impossibilitar a repetição da tragédia, Geia lembrou-se de criar a “sociedade perfeita”. Para isso, o Conselho Grande e Geral, a sede do seu poder parlamentar, incumbiu o executivo Congresso de Estado da função de aproveitar os recursos tecnológicos que tinha ao dispor para, com base no velhinho Sidis, construir uma nova versão deste supercomputador neuromórfico. O novo modelo deveria igualmente ser capaz de simular, em escala integral, todas as sinapses de um cérebro humano, mas deveria ir mais além e criar formas, ainda mais eficientes, de efetuar processos de inteligência artificial. Esta foi a solução encontrada para retornar a dar primazia à razão, desta vez sustentada, apenas, na verdade lógica.

O Sidis II permitiu que Geia instaurasse, com a anuência de todos, o regime da Verdade Absoluta e Universal: tudo, mas tudo mesmo – incluindo pensamentos, sonhos e opiniões – era averiguado e classificado pelo computador, numa escala de Verdade.

O estatuto de cada cidadão media-se inclusivamente pela maior ou menor proximidade à Verdade Absoluta, dos seus atos e formas de estar, vertido na acumulação de pontos no seu bilhete de identidade, atribuídos pelo computador. Caso uma qualquer situação ou ato, em sede de avaliação, fosse declinada pelo Sidis II, por a considerar uma mentira ou uma contestação ao regime e à evolução da civilização, a pessoa que a tivesse criado ou praticado seria excluída da sociedade, perdendo o estatuto de cidadã e tornando-se pária. Deixaria de exercer a sua profissão, fosse ela qual fosse, e passaria a realizar os trabalhos considerados mais sujos e desprezíveis.

Neste sistema destacava-se o papel dos professores, já que a formação e a educação deveriam estar alinhadas com esta forma de entender o mundo.

Alessia era professora de ensino básico e uma cidadã exemplar, absolutamente crente no regime e na bondade do Sidis II. Um certo dia, em aula dedicada à estruturação das noções de espaço e de tempo, com recurso a elementos da História e da Geografia de Geia, entendeu começar a abordagem ao supercomputador e à forma como ele salvou a Humanidade. Enquanto falava, um dos seus alunos põe o dedo indicador, onde morava um grande penso, no ar, e fez uma observação completamente inusitada.

“Na semana passada, estava a brincar, descuidei-me e entalei o dedo na porta. Tive de ir ao hospital. Doía-me muito e fiquei muito triste. A minha mãe disse-me para ter mais cuidado, mas desculpou-me e disse que todos se descuidam às vezes e fazem coisas malfeitas. Como eu fiz. E este computador? Também se engana?”

Nunca tinha colocado essa possibilidade. Surpreendida, mais pela pergunta do que pelo facto de ser uma criança a fazê-la, entendeu dar a resposta “politicamente” mais correta: “O Sidis II não é uma pessoa, é uma máquina muito, muito, inteligente. Por isso nunca se engana!”

Todavia, ficou perturbada. Pela primeira vez, a dúvida instalara-se na sua cabeça: E se o Sidis II não for infalível?

De volta ao gabinete, usou o seu computador pessoal para pesquisar sobre putativos erros que possam ter acontecido no passado. Por um momento, esqueceu-se que o Sidis rastreava tudo e facilmente foi identificada como prevaricadora, acusada de estar a pôr em causa uma verdade absoluta e universal.

Acabou por ser levada a tribunal. Desesperada, deixou que uma certa ousadia prevalecesse em sua defesa e atreveu-se a dizer: “Eu tive uma dúvida e pretendia apenas esclarecê-la. Compreendo agora que, ao contrário do que sempre me foi ensinado, a dúvida não leva ao caos, mas antes é sinónimo de liberdade. Se uns estão no direito de não duvidar, outros deveriam poder fazê-lo: se todos forem concebidos como iguais, onde ficará o direito da diferença, a possibilidade de pensar de maneira diferente e de ser diferente? Mas talvez o problema resida mesmo na tolerância, ou melhor, na falta dela…”

A sentença foi imediata: Alessia foi considerada dissidente e reclassificada como pária!

Passado este episódio, Geia voltou à sua rotina. As crianças, em casa e nas escolas, memorizavam as virtudes do supercomputador; nas ruas, nas praças, nos campos, nas fábricas, nos transportes… em todos os espaços públicos as pessoas exerciam o seu direito de manifestação pacífica, enquadradas na campanha global “Livra-te do Caos, Cuida da Liberdade”, reiterando a sua fidelidade ao regime e ao Sidis II, o seu salvador.

No entanto, o número de dissidentes era cada vez maior. Estes, na obscuridade, organizavam-se em torno de um lema, de uma mensagem, incompreensível ao supercomputador e, por isso, impossível de a prever: “Não há factos eternos, assim como não há verdades absolutas”. Onde há dúvida, há liberdade!

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