Na crónica anterior abordou-se a “Grande Festa do Cante” que ocorreu em 1937 no então Grémio Alentejano em Lisboa, organizada conjuntamente com a Emissora Nacional. Participaram no evento os ranchos de Mértola, Vila Verde de Ficalho, Vidigueira e Vila Nova de São Bento. A designação de “rancho”, utilizada então para identificar cada um dos grupos, não é estranha, por se utilizar para identificar grupos de pessoas, à semelhança dos comummente designados “ranchos de trabalhadores” do Alentejo. A essa designação, tão conhecida pelos alentejanos, acrescentou-se o nome da terra de onde vinham e que representavam, sugerindo então que o importante era mostrar diferentes conjuntos de cantadores, organizados em “ranchos” que vinham daqui e d’além. Volvido um ano de trabalho do Arquivo Digital do Cante no terreno, uma das questões que se coloca sobre a nomenclatura dos grupos é se efetivamente essa designação inicial de “rancho” ou “rancho coral” visava apenas demonstrar a simplicidade do povo alentejano ou se a mesma corresponderia já a uma tentativa de padronização (mais uma) do cante?! Ganhando força esta última hipótese ao fazer uma breve análise aos nomes utilizados pelos grupos ao longo do tempo e somando também a estes o certificado que hoje se divulga, ilustrado por Azinhal Abelho, atribuído ao Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel, em 1952 (existe um outro original, idêntico, na Casa do Povo de Amareleja).
Na década de 30 do século XX já existia também o Rancho Coral de Serpa que, em 1948, viria a integrar a casa do povo, alterando o seu nome para Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa, e o Grupo “dos Mineiros”. Sugere-se, portanto, que seria comum, no período até ao aparecimento das casas do povo a partir de 1933, a utilização, por parte dos grupos de cante, da designação “rancho”.
Dos grupos já mencionados verifica-se que três deles são do concelho de Serpa, onde nunca se terá perdido esta forma para designar os grupos de cantadores. Percorrendo a vasta lista de grupos de cante disponíveis na plataforma on line do projeto, encontram-se outros nomes, de períodos até posteriores, mas com a designação de “rancho”, nomeadamente: Rancho Coral de A-do-Pinto, Rancho Coral de Pias (anterior ao Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias), Rancho Coral Os Camponeses de Vale Vargo, Rancho Coral Feminino Papoilas do Enxoé, Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, Rancho de Cantadores do Mestre Bento, Rancho Coral e Etnográfico de Vila Nova de São Bento. Todos do concelho de Serpa e aos quais se pode juntar o Rancho de Cantadores de Paris, que não estando sediado em Serpa foi apadrinhado pelo Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento. Impõe-se então a pergunta: porquê a designação de “rancho” e porquê tão circunscrito ao concelho de Serpa?
Quinze anos depois da “Festa Alentejana” no Grémio Alentejano, realizada sob a forma de “Concurso de Modas”, surge em 1952, no Pavilhão dos Desportos, a continuidade desta tipologia de evento, baseando-se na mesma fórmula. Agora “aperfeiçoada e espetacularizada”¹ e anunciada como “Concurso de Cantadores”, ao qual assistiram 6000 espectadores e onde participaram 10 ranchos corais. O Rancho de Vila Verde de Ficalho, vencedor do 3.º prémio, cantou: “A medronheira no vale”, “Ó águia que vais tão alta” e “Marianita, é baixinha”. Já o Rancho de Aldeia Nova de São Bento (1.º classificado) apresentou-se com as modas “Do varejo”, “Fui passear lá ao teu montinho” e “Camponês alentejano”. Também o Grupo Infantil da Mina de São Domingos, convidado especial, interpretou três modas, cujos nomes não são referenciados. O Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa apresentou-se com as modas “De Serpa, Santa Maria”, “Meu lírio roxo do campo” e “Chamaste-me extravagante”, enquanto o Grupo Coral da Casa do Povo de Reguengos de Monsaraz interpretou “O melro”, “O loendreiro” e “Linda Rosa”. O Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel (4.º classificado) marcou presença com “Sou alentejano”, “Alentejo dos trigais” e “Aljustrel Vila Mineira”. Os temas “Jardim”, “Barreiro” e “Trovoada” foram interpretadas pelo Grupo Coral da Casa do Povo de Sobral da Adiça, enquanto o Rancho Misto de Santo Aleixo da Restauração levou a Lisboa as modas “Ao romper da bela aurora”, “Vou deixar o Alentejo” e “Guadiana corre, corre”. O vencedor do 2.º prémio foi o Grupo Coral da Casa do Povo de Amareleja que se apresentou a concurso com os temas “Moda da lavoura”, “Nossa Senhora de Ayres” e “Não quero que vás à monda”. Do Rancho Coral de Pias omitiram-se os versos das modas na revista, por serem “transgressivos”. Coisas daquele tempo….
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do Cante Cidehus/Universidade de Évora
¹Melo, D. (2020). “Um povo, uma cultura, uma região”: a história exemplar da Casa do Alentejo. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 45(1-2). Obtido de https://ojs.letras.up.pt/index.php/tae/article/view/9874