Diário do Alentejo

Memória: Fontes de Vila Alva

20 de abril 2020 - 14:25

Recordo aqueles ociosos momentos debruçado sobre um ‘Mandrake’ ou um ‘Kansas Kid’, desconfortavelmente sentado no alto vaso de barro onde toda a família se ia aliviar. Um lavatório de ferro com bacia esmaltada e um velho jarro de louça faziam-lhe companhia. E mais não havia naquela pequena e singela divisão improvisada, quase sempre submersa na penumbra, por trás do forno, ali ao lado do alto portão que abria o pátio da casa ao amplo largo do cruzeiro e dali a outro mundo. Muitas vezes me calhou a sofrida empreitada de ir “aventar a penicada”.

Texto: João Taborda

 

Recordo aqueles ociosos momentos debruçado sobre um ‘Mandrake’ ou um ‘Kansas Kid’, desconfortavelmente sentado no alto vaso de barro onde toda a família se ia aliviar. Um lavatório de ferro com bacia esmaltada e um velho jarro de louça faziam-lhe companhia. E mais não havia naquela pequena e singela divisão improvisada, quase sempre submersa na penumbra, por trás do forno, ali ao lado do alto portão que abria o pátio da casa ao amplo largo do cruzeiro e dali a outro mundo. Muitas vezes me calhou a sofrida empreitada de ir “aventar a penicada”. O despejo fazia- se para dentro de uma velha “tarefa”, sem fundo, arrumada a um canto da cavalariça. Aquele procedimento permitia aos “líquidos” embeberem a pasta em que se ia transmutando a cama dos animais, enquanto os “sólidos” permaneciam no interior do pote, devidamente cobertos por cada nova camada de palha. No interior profundo de um país parado no tempo, era a depurada sabedoria popular a funcionar, sem fundamentações científicas nem ostentações mediáticas, numa altura em que ninguém ainda pensava em casas de banho secas ou sequer se falava em ecologia. Lembro-me dos meus tios terem dois machos e um burro branco, de trato difícil e olhar de poucos amigos. Quando o celebrado penico estava ocupado e o aperto não consentia demoras, era ali, junto das “bestas”, que a gente da casa se “ia agachar”. No dia da limpeza da cavalariça um forte, quase insuportável, odor invadia o pátio! Uma massa pastosa era retirada com forquilhas para um carro de mão de taipais e dali transferida para o carro de besta, que aguardava logo ali junto ao portão. Daí seguia para o campo onde, depositada em montes, acabava por curtir.

 

Eram as estrumeiras ou esterqueiras. Em redor da vila, perfeitamente integradas no ambiente, ocupavam um lugar e tinham uma importância relevantes no ciclo da produção agrícola e na revitalização das terras. Depois, com a substituição dos animais pelas máquinas e das cavalariças pelas garagens, desapareceram dos campos e o seu odor da nossa memória olfativa, substituído quantas vezes pela nauseabunda exalação que emana dos esgotos a céu aberto em que o progresso foi transformando os nossos regatos. Tão grave quanto isso, ao redor da vila, naqueles lugares onde há décadas, em tempos de atraso e ignorância, se sentia a vida pulular no interior duns montículos doirados, nascem e crescem em tempo de consciência ambiental degradantes lixeiras onde o comodismo e a irresponsabilidade se desfazem de tudo um pouco… eletrodomésticos, pneus e velhos móveis, toda a espécie de entulhos, desperdícios e embaraços, por vezes mesmo ali… à beira da estrada. E com isto perdi-me!... Ah!... Férias escolares no Alentejo… anos sessenta, setenta… do século passado! Acabávamos de ouvir, “lá de longe”, Neil Armstrong falar de um grande passo para a humanidade e ainda o saneamento básico e a rede domiciliária de água não tinham chegado a Vila Alva. Por isso, aqueles radiantes dias de férias eram pautados por ritmos e gestos bem diferentes, quer dos atuais, quer mesmo dos que compunham o meu quotidiano na suburbana vila de Queluz. Ditados por um relacionamento muito próprio com a água, que não tínhamos ainda a correr de torneiras e que, por isso, se valorizava e consumia de um modo muito mais sóbrio e racional. Além do mais, os costumes, nomeadamente o asseio pessoal, eram os de um mundo rural ainda muito colado a antigas usanças e próximo de medievos tempos. Lembro-me de a minha mãe contar que o meu avô dava banho apenas quando ia à ribeira a alguma pescaria! Aquela ablução anual, com o seu quê de cerimonial, quase religioso, ocorria lá no “pego das Maias”, em grupo, na companhia de barbos, pardelhas e eirós. Naturalmente que a fragrância com que regressaria a casa seria “eau de pêxe”! A vida era então ritmada pelas regulares e imperativas idas à fonte. Acarretava-se água em quartas, alojadas em carros de mão. Ainda ouço o rodar metálico na calçada, mais solto e leve à ida, pesado e cheio no regresso. Já em casa, a altura do “pial” obrigava-me a um manuseamento muito cuidado do sensível vasilhame e só mesmo o papagaio, poiso do copo de todos, testemunhava aquela melindrosa operação. Outras vezes era em cântaros de folha de zinco, de 25 litros, pendurados da albarda com que o prestável burro se deixava aparelhar. A passo, eu à frente, de arreata bem firme, o bicho atrás, cabisbaixo, prestativo mas sempre de olhar meio alheado, como se eternamente magicando nalguma… lá seguíamos a caminho.

 

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DA FONTE DE SÃO JOÃO UMA ‘ENXÓGADELA’ E TOCA A ENCHER….

 

Um “já cá canta!” celebrava a chegada da água junto à boca das quartas ou dos cântaros antes de se derramar livre e cristalina, iludindo de frescura o adiantado daquelas manhãs de agosto. Suspeito que a Fonte de São João fosse a mais antiga da terra. A de mergulho, que a das bicas foi obra já dos “nossos dias”. Sustento a ideia no facto de ser esta a fonte mais próxima do primitivo núcleo de Vila Alva. Vem dos antigos que o topónimo tem origem nos três montes, os “montes alvos” ao redor dos quais, com o tempo, o casario foi coalhando. Ora, ainda de acordo com velhas lembranças, um desses “montes alvos” localizar-se-ia precisamente junto à Fonte de São João. No texto da Visitação do Cardeal-Infante D. Henrique à Igreja de Santa Maria de Vila Alva, corria o ano de 1534, a propósito das propriedades da dita igreja é feita referência a um “[…] feregeall, ao Rossio, junto da Fonte do Concelho […]”. Já no início do século XVIII (1708), na sua Corografia Portugueza, o padre António Carvalho da Costa ao referir-se a Vila Alva diz que a terra tem 350 vizinhos e “huma fonte de excellente agua”. Num caso e noutro julgo que se trata de alusões à fonte que acompanhou Vila Alva desde os primeiros séculos de existência. Fonte que, já no século XVII, dada a relativa proximidade à recém-edificada ermida de São João, terá começado a ser designada como tal. Certo é que, em documentos do arquivo da Misericórdia de Vila Alva, a rua que desemboca no Largo da Fonte aparece referida, desde o último quartel de seiscentos, apenas por Rua da Fonte, nome que conservou até ao século XX e que poderá bem ser uma reminiscência dos tempos em que na terra não existiria outra fonte. Recordo-me bem da caixa quadrangular abobadada construída em alvenaria caiada de branco, do negro poço de mergulho e do seu estreito rebordo que, passo a passo, como que à beirinha de um abismo, temerariamente desenhávamos, eu e os meus camaradas de aventuras, numa prova que críamos, naquela idade imaginativa dos dez anos, ter um valor perfeitamente iniciático. Quando convivi com este espaço, já o “tanque velho”, em frente da fonte e onde as mulheres iam lavar de joelhos, tinha desaparecido e dado lugar ao “fosso” das bicas e já outras construções se tinham vindo encostar à alva caixa do velho poço de mergulho. Por essa altura também, já o matadouro tinha roubado o nome à Travessa da Fonte que, no final do século XIX, era tratada por Travessa da Cêrca e já uma ponte de São João há muito desaparecera da memória das gentes da terra. As intervenções recentes na Fonte de S. João devem ter ocorrido no final da década de 1940 e, principalmente, na segunda metade dos anos de 1950. Em 1949, na sessão da Junta de Freguesia de Vila Alva de 5 de junho, sob a presidência de Leonardo Monteiro de Mira, foi aprovado por unanimidade que “[…] a verba a gastar com a edificação do matadouro fosse gasta no arranjo da Fonte de S. João, em virtude da grave crise de falta de água que nesta vila se está a sentir”. De acordo com a ata da sessão de 13 de julho daquele ano, as obras decorreriam normalmente. Já em 1955, uma vez mais em virtude da grande falta de água para abastecimento público e devido ao mau estado em que se encontrava a canalização das águas da nascente do Olheirão e Santo Amaro, foi decidido, em reunião da junta de freguesia de 2 de outubro, presidida por Francisco Fialho Pires, que o material a utilizar nas obras já em curso fosse de “[…] fibrocimento ‘Cimianto’, da referida nascente até ao fontanário [fonte das bicas], tudo com tubagem nova, e ver se se consegue arrancar a existente sem qualquer defeito para, podendo ser, ser colocada na fonte de S. João a canalizar para fontenário e lavadouro […]”. Em abril de 1956, apesar da urgente necessidade da obra, ainda os trabalhos na Fonte de S. João não se tinham iniciado, insistindo o presidente da junta que se “[…] devia providenciar no sentido de se mandar executar o projeto da canalização da água da Fonte de S. João para um lavadouro a edificar em local superiormente a escolher, o que todos concordaram”. Se o projeto contemplava um lavadouro, o mesmo não terá, contudo, sido construído, sendo de crer que a obra de condução das águas da primitiva Fonte de S. João para as bicas tenha acontecido já nos últimos anos da década de 1950. Menos de duas décadas depois, já Abril nos tinha inundado de luz, o largo da Fonte de São João foi alvo de uma intervenção que só as trevas da insensibilidade e da ignorância permitem explicar. A secular fonte de mergulho foi demolida, o jovem fosso das bicas inumado e o terreno terraplanado. Um espaço que, durante séculos, foi de vital importância para os habitantes de Vila Alva, também lugar de encontros e de convívio, acabou transformado num moribundo recanto, despojado de vida.

 

 

 

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FONTE DE NOSSA SENHORA DA ROCHA OU FONTE NOVA

 

Mas uma outra fonte de mergulho existe (ainda) na vila. O designativo “Nova” poderá estar conforme com a época mais recente do setor sudoeste da povoação em que se localiza. São já muito poucos os vilalvenses que com ela conviveram e a recordam. Mas a toponímia preserva ainda a sua memória no nome de um beco, duma travessa e do rossio onde jaz incógnita e desprezada: o rossio da Fonte Nova. Desconhece-se a sua origem. No arquivo da Misericórdia de Vila Alva a referência mais antiga a esta fonte data de 1875. Surgem, contudo, desde 1842, repetidas alusões a uma Fonte de Nossa Senhora da Rocha que, ao invés do que acontece com a Fonte Nova, ninguém atualmente é já capaz de localizar ou se lembra de ter ouvido aos mais velhos, apesar de, ainda em 1909, existir uma travessa com o seu nome. É quase certo tratar-se da mesma fonte. Em primeiro lugar porque, tal como a Fonte Nova, também a Fonte de Nossa Senhora da Rocha deu nome a um beco, a uma travessa e a um rossio. Também porque em documentos da Junta de Paróquia de Vila Alva, do último quartel do século XIX, há referências a residentes em Vila Alva cuja morada nos sugere tratar-se da mesma fonte. É o caso de Francisco Anselmo e de António Salgueiro. O primeiro, em documento de 1876 é assinalado como morando no Beco da Fonte de Nossa Senhora da Rocha e, num outro de 1878, no Beco da Fonte Nova. António Salgueiro é dado como residindo no ano de 1875 na Rua do Rossio (atual Rua João Afonso, com traseiras para o Beco da Fonte Nova) e um ano depois no Beco da Fonte de Nossa Senhora da Rocha. É de crer que, tratando-se da mesma fonte, a designação “Nossa Senhora da Rocha” seja mais antiga e que o nome “Fonte Nova” tenha surgido após alguma obra de benfeitoria no fontenário. No final do século XIX mantinham-se os dois nomes, mas desde então terá prevalecido o último o que, naturalmente, acabou por levar ao esquecimento do primeiro. Como era a Fonte Nova? Julgamos que idêntica à Fonte de S. João ou à vizinha da ermida de Nossa Senhora da Represa há poucos anos restaurada. Uma caixa quadrangular abobadada, de alvenaria e com cobertura de duas suaves águas revestidas a tijoleira. A entrada dava acesso, por lanço de escadas, ao fresco poço de mergulho. Hoje, o Rossio da Fonte Nova é, em Vila Alva, mais um espaço destituído de dignidade. Com o passar do tempo foi-lhe sendo subtraído o seu tradicional estatuto de largo comunitário e a sua fonte encontra-se quase completamente enterrada no esquecimento, oculta em propriedade privada! Depois da desastrada intervenção no largo da Fonte de S. João, os vilalvenses mereciam ver devolvida à luz do dia a Fonte Nova e requalificado como espaço alternativo de lazer o seu rossio, onde se ergue desde 1956 o posto de transformação da antiga Companhia Eléctrica do Alentejo e Algarve, marco na história recente de Vila Alva e símbolo do triunfo sobre a ignorância e as escuridões.

 

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