Diário do Alentejo

Arquitetura e memória: As “casas altas” de Vila Alva

06 de março 2020 - 18:50

Lembranças… Quando cheguei a Vila Alva já nada restava do notável edifício que durante séculos emoldurara, altivo, o sobranceiro norte da praça velha. Poucos anos antes, na década de Cinquenta, fora adquirido e mandado demolir pelo doutor Augusto Guerreiro Bicó. Residente na terra, clínico assistente dos doentes protegidos pela Misericórdia local, fez, no mesmo local, levantar o prédio que ainda hoje perdura. Guardo a lembrança de ter sido ao redor da lareira, numa daquelas longas e conversadas noites de invernia, que ouvi falar pela primeira vez da velha casa à minha tia Aldinha. “Casas altas”, assim se referiu ao desaparecido palacete, porque era assim que na terra ainda era conhecido, e que “tinha brasão” e “pertencera a uma gente fidalga muito antiga e rica!”, acrescentou, num tom de quase reverência… pois só muita maquia permitiria a grandeza de uma casa assim, tão alta, no meio de térreas e humildes habitações. Erguendo-se no alto da pequena colina no coração da aldeia, as “casas altas” tinham tudo para alimentar a imaginação de um jovem, devorador compulsivo dos mistérios de Enid Blyton… Mas, o que acabou por incendiar em mim o fascínio por aquele palacete há pouco desaparecido, mais ainda do que a sua antiguidade ou nobreza, foi uma história, que os mais velhos ouviram já contada pelos avós e que continuavam repetindo, quase em jeito de lenda envolta em denso enigma: “Quem naqueles tempos idos se agarrasse às pesadas aldrabas da porta grande daquela casa, por maior crime que tivesse cometido, ficaria a salvo”. “Porquê tia?”, disparei. “A tia não sabe, é o que se ouvia aos antigos!”, foi a resposta, para meu desconsolo… “Mas, conte mais!”, implorei. “O que sabe das ‘casas altas’?”. “Lembra-se ainda de quem lá vivia?”. E o que então soube ficou-se pelos derradeiros anos do palacete, que foram de decadência e ruína… pelo último proprietário residente no edifico, José Maria Mira Ramalho. De família abastada de Vila Ruiva, José Maria veio casar a Vila Alva com Arlinda Afonso D’Arce Cabo Duarte, uma das duas filhas de Abílio Antunes Duarte (professor do ensino primário nesta terra e provedor da Misericórdia local em 1904) e de Laura Afonso D’Arce Cabo.

 

Que José Maria Ramalho, depois de malbaratar toda a fortuna, deixou chegar o nobre palacete a um profundo estado de decadência, imagem, aliás, da situação em que desembocou a sua própria vida. Nos últimos anos compartilhou-o com meio mundo, a quem arrendava salas e recantos. Faleceu sem amparo na mais confrangedora miséria. Que, depois, o prédio ficou entregue a um acabado abandono, escancarado aos ventos e às gentes. Por isso, e porque os tempos eram difíceis, dele fizeram ainda abrigo, já nos anos de 1940, algumas das pessoas mais indigentes da aldeia, que o transfiguraram em palheiro e, entre goteiras, por lá iam aquecendo as noites de inverno, com lumes arrumados ao cada vez mais sumido colorido das salas do piso térreo… “Pinturas!”, exclamei. “Sim, lindas pinturas decoravam as salas”, garantiu a tia Aldinha. “Que nelas se via muita bicharada graúda, bois e cavalos e também plantas, do mais perfeito que imaginar se possa”, acabei sabendo junto de outras pessoas que ainda as viram e me asseguraram ser verdade. E, por fim, lá chegaram as picaretas, os pés de cabra e as marretas. A impiedosos golpes, as velhas paredes vieram abaixo, enq“casas altas” permaneceram até há pouco… A investigação em bibliotecas e arquivos de Lisboa, Vila Alva e Cuba permitiu que a névoa se dissipasse um pouco e se resolvessem algumas questões acerca da tal família “fidalga muito antiga”, enquanto o interesse e a generosidade de particulares, de que destaco o doutor José Manuel Bicó, filho do doutor Augusto Guerreiro Bicó, fizeram chegar-me às mãos preciosos documentos fotográficos dos anos de 1930(?) e de 1950 (Estampas I, II e III), garantia de uma reapropriação objetiva do velho palacete, já envolto na penumbra das recordações dúbias. … das “casas altas”… Na fachada, de dois andares, abriam-se no piso térreo duas portas, a principal, ampla, com um portal em cantaria de mármore ao gosto do século XVIII, a tal das influentes aldrabas, e outra de serviço, de modestas dimensões. Duas janelas de peito ladeavam a entrada principal. No andar nobre iluminavam os interiores três elegantes janelas de sacada. A casa era brasonada, assim se confirmando a história da “gente fidalga”.

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Contaram-me que a pedra de armas terá sido levada para Évora aquando da demolição. Do lado da ladeira que desce para a travessa de D. João (ou do Berço), no corpo principal do edifício, abria-se uma janela de sacada ao nível do andar nobre, uma outra ao nível do piso térreo e, nos baixos, adornada com cantaria de mármore, uma porta, a que se acedia por negra laje de xisto. Num corpo posterior abriam-se cinco janelas, uma ao nível do piso superior, duas do piso térreo e outras duas no piso inferior, sendo uma de peito, ao lado da porta atrás referida. Poupadas aos golpes das picaretas do doutor Bicó, para além da austera escadaria granítica que, nas traseiras da casa, dá acesso ao quintal, sobraram quatro compartimentos abobadados nos pisos inferiores, incluindo aquele que provavelmente serviu de cavalariça, ampla divisão coberta por uma majestosa abóbada de berço, em tijolo de cutelo. … e dos “Mira Cabo Coelho Perdigão” Na demanda dos tais “fidalgos muito antigos”, que a tradição oral associou às “casas altas”, a investigação permitiu recuar aos alvores do século XVIII… a Ventura Rodrigues Fernandes, natural de Miranda do Corvo, juiz ordinário de Vila Alva entre 1714 e1718. Na década de Trinta residia na rua do Outeiro das Moitas, em prédio que ainda hoje existe e cujo interior conserva três divisões abobadadas de muito interesse. Do casamento de Ventura Fernandes com Catarina Lopes Godinho nasceu, no ano de 1708, António Lopes Cabo que, em 1730, entrou para familiar do Santo Ofício e nesse mesmo ano foi eleito capitão-mandante das Ordenanças de Vila Alva, cargo que desempenhou até às vésperas do seu falecimento, no ano de 1782. Homem muito abastado, acerca dele está escrito que era “da principal nobreza e Governança desta Vª [de Vila Alva]”. No ano de 1751 desempenhou o cargo de reitor da recém-criada irmandade do Senhor Jesus dos Passos de Vila Alva e foi, nas décadas de 1740 a 1760uanto nuvens de cinzo pó se levantavam no ar. E foi numa nuvem de mistérios que as sucessivas vezes eleito juiz da Confraria das Santas Almas e provedor da misericórdia local.

 

Sabe-se que o capitão António Lopes Cabo terá vivido nas casas da rua do Outeiro das Moitas, que herdou de seu pai, até aos primeiros anos da década de 1770 e que, em 1772, o único imóvel que possuía na praça velha era uma adega… António Lopes Cabo casou com D. Maria do Ó Sebolinho. Desse matrimónio nasceram dois filhos, António Afonso de Mira Cabo e Francisco de Mira Cabo Sebolinho. António Afonso de Mira Cabo nasceu em Vila Alva, na década de 1730. Foi juiz de fora da vila de Mourão, sendo referido, numa petição endereçada à rainha D. Maria I, como “hum dos mais ricos Vassalos q [Sua] Mage tinha na Provincia do Alentejo”. Sabe-se que em 1776 morava em Vila Alva e que em 1782 o seu nome constava entre os propostos pelos vereadores e procurador da Câmara de Vila Alva para o lugar de capitão das ordenanças da terra. Terá sido o doutor António Afonso de Mira Cabo que mandou construir o palacete da praça velha, para aí residir com sua esposa, D. Josefa Coelho Perdigoa? Parece lícito pensar que sim: de acordo com documentos da câmara e da misericórdia, de Vila Alva, na década de 1760 Francisco de Mira Cabo Cebolinho morava nas casas do Outeiro das Moitas, sendo o irmão, António Afonso de Mira Cabo, igualmente referido como residindo em Vila Alva, em meados da década de 1770. Ora, é de crer que, enquanto filho primogénito, detentor do cargo de juiz de fora e, tal como foi já referido, um dos mais ricos vassalos da província do Alentejo, a sua residência estivesse à altura de um tal estatuto; por outro lado, a íngreme travessa que acompanhou pelo lado poente as “casas altas” aparece mencionada, ainda em documento da década de 1930, como “Ladeira do doutor”, derradeira lembrança do já longínquo doutor António Afonso de Mira Cabo, morador no palacete da praça velha? Finalmente, a história dos batentes da porta do palacete e das suas prerrogativas não poderá, de alguma forma, relacionar-se com o cargo de juiz de fora exercido por António Afonso de Mira Cabo? António Afonso de Mira Cabo, que correu perigo de vida em outubro de 1784 (Estampa IV), veio a falecer em Vila Alva no ano de 1789, tendo deixado dois filhos, Manuel António de Mira Cabo Coelho Perdigão, nascido em Vila Alva em 1777 e D. Maria Angélica Coelho do Cabo. E é, enfim, numa notícia publicada na “Gazeta de Lisboa”, no ano de 1793, que vamos encontrar a propriedade das “casas altas”, inequivocamente, associada a esta família e, em concreto, a Manuel Antonio de Mira Cabo Coelho Perdigão. A ele é atribuída a propriedade do “Palacio” (sic) considerado como o melhor de Vila Alva. Em 1794, D. Maria I concede-lhe carta de brasão de armas e, dois anos depois, fá- -lo seu cavaleiro fidalgo.

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Em 1816, D. João VI concede-lhe nova carta de armas. Homem poderoso, influente e ilustrado, Manuel António de Mira Cabo Coelho Perdigão seria pessoa considerada pelos seus conterrâneos. Prova-o a circunstância de ter presidido aos destinos da Misericórdia de Vila Alva, principalmente, nas décadas de 1810 e 1820. Confirma-o o facto de o senado da Câmara de Vila Alva, reunido a 28 de fevereiro de 1819 nos paços do concelho com o clero, nobreza e povo desta vila, ao acordar se “procedese á fatura de um Relogio Publico, e tudo o mais a elle pertencente com caza torre e sino”, tê-lo escolhido para encarregado dessa obra (Estampa V). E o tempo foi passando, soando do alto da torre, que fez agora 200 anos se começou a levantar… à beira das “casas altas” dos Coelho Perdigão. A vida desta família haveria de se manter entrelaçada com a de Vila Alva durante mais quatro gerações, até às primeiras décadas do século XX. Ligações de natureza económica, social, institucional e afetiva, feitas de alegria, nobres gestos, mas também de funestos episódios, como o da súbita morte, em 1851, de Maria Benedita Guedes Pimenta, neta de Manuel Antonio de Mira Cabo Coelho Perdigão. Ainda hoje se ouve contar, porque assim passou de geração em geração, que a jovem Maria Benedita, residente com a família em Beja, terá predito o seu falecimento, tendo avisado os pais de que tal ocorreria numa futura visita a Vila Alva. Fantasia ou não, certo é que assim veio a acontecer, ficando sepultada nesta terra, no adro da igreja de São João Batista. É possível que este triste acontecimento tenha contribuído para retirar brilho e vida ao palácio da praça velha, concorrendo para um declínio que haveria de atingir o paroxismo com a sua demolição, em meados do século XX.

Texto: João Taborda

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