Diário do Alentejo

Fialho de Almeida: Questões de natureza familiar

04 de março 2020 - 13:00

A ideia deste texto surgiu no contexto das datas e factos em que, nos primeiros dias de março, se assinala, a 1, o momento em que Fialho de Almeida fez o seu testamento, e, a 4, a data do óbito do escritor. Na relação com esses factos, a Associação Cultural Fialho de Almeida vai realizar a 14 de março um “Percurso com Fialho”, em Cuba, ligando a antiga Tabacaria do Fonseca, espaço muito frequentado por Fialho de Almeida, e onde exatamente escreveu o seu testamento, a Casa do Escritor e o cemitério de Cuba, pois nele repousam os restos mortais de Fialho em jazigo próprio – verdadeira obra de arte. Em primeiro lugar cabe defender a importância de conhecer o escritor através da sua obra, o que implica ler os seus textos, e, na verdade, estamos apenas a reafirmar o que tem sido a nossa prática através do projeto “Ler Fialho de Almeida”, que se conjuga com esse outro “Percursos com Fialho”, ambos da Associação Cultural Fialho de Almeida, a cuja direção presidimos. De imediato, impõe-se então justificar esta breve incursão por alguns elementos da vida familiar de Fialho de Almeida.

 

Uma forte razão prende-se com a vulgaridade com que ouvimos falar de Fialho, da família, da mulher, da sua vida, com base na informação oral e testemunhos deturpados que foram passando, decorridos que são 109 anos sobre a sua morte. Sabemos que José Valentim Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades a 7 de maio de 1857, e, através do registo de batismo, conhecemos o nome dos pais, dos avós paternos e maternos, a sua naturalidade, nome dos padrinhos, e, em averbamento, também foi anotado o local e data do óbito de José. Assim, foram seus pais Valentim Pereira d’Almeida, natural de Oleiros, e Mariana da Conceição Fialho, de Vila de Frades, sendo José o seu primeiro filho; os nomes dos avós paternos, oriundos de Proença Nova, eram João Pereira d’Almeida e Ana Maria de Jesus, enquanto os avós maternos, naturais de Vila de Frades e Vidigueira, respetivamente, eram Manuel de Deus e Maria Gertrudes. Os padrinhos foram José Joaquim de Carvalho e Sebastião José Carvalho de Almeida. Do averbamento neste mesmo registo é sabido que Fialho faleceu na vila de Cuba a 4 de março de 1911, o que, obviamente, se comprova pelo registo do óbito. Da família mais direta de Fialho de Almeida, foram seus irmãos: Gertrudes, que a 15 de fevereiro de 1859 “faleceu da vida (…) recém nascida e batizada (…)”; Maria de Jesus, que nasceu em julho de 1861 e faleceu com 19 anos, em setembro de 1880; Joaquim Tomás, que nascido em setembro de 1867, era, portanto, 10 anos mais novo do que Fialho, e a ele sobreviveu até 1922. O óbito do pai de Fialho ocorreu a 30 de dezembro de 1876 e o da mãe em 15 de janeiro de 1902, sem que ambos tenham deixado testamento.

 

Assim, de toda a família, e após a sua morte, apenas o irmão Joaquim Tomás permanecia vivo, embora, como o próprio Fialho referiu no seu testamento, possuísse “enfermidade” que o incapacitava de se “administrar”, pelo que vivia sob “guarda e proteção” do irmão. Como já afirmámos, Fialho de Almeida faleceu em Cuba e aqui está sepultado. Ora, importa então referir a ligação que estabeleceu com esta vila, e que foi muito para além da que ocasionalmente se verificava aquando das suas viagens de comboio na ida e regresso de Lisboa, pois que, nesta cidade, passou a viver desde que em 1866 entrou num colégio ao Conde Barão, mesmo que durante algum tempo tenha voltado à sua terra após a morte do pai. Segundo o jornal “A Folha de Beja”, de 14/9/1893, “Fialho de Almeida, o nosso glorioso comprovinciano e primoroso escritor, vai contrair matrimónio com uma senhora da Cuba e vem fixar definitivamente a sua residência no Alentejo”. Numa vertente bem diferente e que nada tem a ver com o casamento, a edição do jornal de 28 desse mês de setembro publica uma “Carta de Lisboa”, sobre teatro e autores que “apresentam peças para serem representadas”, e acrescenta que “Fialho de Almeida verá, por certo, posta em cena a sua tradução da magnífica comédia de Emile Angier Les Effrontées”. Posteriormente, a 9/11/1893, “A Folha de Beja” refere que “chega hoje a Cuba, onde vai contrair matrimónio, o ilustre escritor Fialho de Almeida”, ainda que possamos concluir que, afinal, Fialho viria a 17 de novembro, pois, em notícia do dia 16, se afirma: “É amanhã que Fialho d’Almeida parte, no comboio da tarde, para Cuba”. Independentemente do dia da chegada, o casamento de José Valentim, médico, ocorreu a 23 de novembro de 1893, na igreja de Vila de Frades, quando ele tinha 35 anos de idade (ainda que fossem 36) e Emília Augusta, 32 anos.

 

O registo de casamento menciona os ascendentes e naturalidade, e sobre a noiva refere que “era natural da Vidigueira, moradora desde menor idade na Cuba, filha reconhecida de Firmino Garcia Pêgo, já defunto, natural de Cartilejos, Espanha, e de mãe incógnita”. Portanto, não restam dúvidas, a mulher de Fialho de Almeida não era natural de Cuba, embora aqui tivesse vivido desde muito nova, não se lhe conhece a mãe, e sabe- -se que foi reconhecida pelo pai, ato que ocorreu por escritura pública de 1 de agosto de 1871, data na qual Firmino Garcia Pêgo legitimou também o filho António Garcia Pêgo, na véspera do dia em que fez testamento (declarando- os seus herdeiros), e nomeou sua testamenteira Rosa da Purificação Mimoso. Firmino faleceu em Lisboa a 28 de maio de 1887. Para melhor clarificação, em batismo de 16 de janeiro de 1861 se refere que foi batizada “uma criança do sexo feminino [a que foi dado] o nome de Emília, filha de pais incógnitos, que foi entregue pelas quatro horas da manhã do dia quinze do corrente a Sebastião José Carvalho de Almeida, morador em Vila de Frades, solteiro, negociante, que foi padrinho (…)”, como, aliás, havia sido de José Valentim Fialho de Almeida. Emília Augusta pode não ter sido criança exposta à soleira de uma porta, mas foi entregue a quem veio a ser seu padrinho, desta forma se escondendo, aparentemente, a filiação. O pai, solteiro à data do testamento, legitimou- a quando tinha 10 anos (1871-1861), desconhecendo- se a idade com que veio para Cuba, e a relação que haveria com Rosa da Purificação Mimoso, “que hoje vive em minha companhia”, segundo Firmino Pêgo em testamento, legando-lhe “a quantia de cento e oitenta mil reis” anuais, de que Rosa abdicou em favor de Emília, após a morte do pai. Assim, face a estes documentos, ou outros a que não acedemos, não tem consistência qualquer afirmação oral, não fundamentada, sobre a família da mulher de Fialho, como, aliás, quanto à causa da morte, pois a voz corrente sobre tuberculose não é confirmada pelo registo de óbito. O assento de óbito refere a morte, ocorrida na rua João Vaz a 21/9/1894, quando Emília Augusta tinha 34 anos (melhor seria 33), e que falecera “sem dar tempo para receber a santa unção”. A 4 de outubro, o jornal “A Folha de Beja” dá notícia de que “morreu em Cuba a esposa do distintíssimo escritor Sr. Fialho d’Almeida”.

 

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O facto de a mulher de Fialho falecer passados meses após o casamento, também gera testemunhos orais de que a tratava mal, a obrigava a ir a pé para Vila de Frades… Após a morte da mulher, Fialho de Almeida fica-se por Cuba e Vila de Frades, desloca-se a Lisboa, viaja para fora do País, e também ele é, ou não, surpreendido pela morte, assunto sobre o qual igualmente se especula, entre morte natural ou suicídio, matérias que têm alimentado os “curiosos” mas também os investigadores. O jornal “O Operário”, de 12/3/1911, em “Mortos ilustres – Fialho d’Almeida”, refere: “Informam-nos de haver falecido em Vila de Frades, em virtude de se ter envenenado, este grande escritor”. Portanto, é taxativo nas suas afirmações, baseadas, provavelmente, em notícia que corria na região. Continua este jornal a aludir ao percurso político de Fialho, concluindo que “mergulhou na treva densa da reação e que certamente o conduziu ao suicídio”. Já o jornal “O Século”, de 5/3/1911, noticia a morte inesperada, conhecida via telégrafo, não refere causa da mesma, e elogia Fialho como “um dos nossos mais extraordinários trabalhadores da prosa”, o que deve prevalecer a qualquer crítica emitida no âmbito de “paixões políticas (…)”. O amigo Vicente Taquenho, em artigo que integra “In memoriam” (1917), fala de como Fialho se queixava (a 28/2/1911) do estado de saúde, da revolta pelo “exílio político”, e reforçava a necessidade de fazer testamento, nada apontando neste texto para suicídio. É fácil estarmos de acordo com o que se lê na revista “O Ocidente”: “Chegou um momento (...) em que Fialho de Almeida parece se cansou de tanto criticar, sem (…) atingir os fins que se propunha lutando pelos humildes e indispondo- se com os poderosos. Era um vencido!”. Na verdade, a doença e o silêncio para que se sentia remetido pelo Governo da República estavam, porventura, a conduzir o escritor ao suicídio, que podendo não ter ocorrido de facto, lentamente ia acontecendo em si próprio, dando-lhe motivos bastantes para fazer testamento.

 

Da causa da morte nada diz o registo de óbito, mencionando que faleceu, sem ser sacramentado, José Valentim Fialho d’Almeida, de 53 anos, médico e proprietário, que o óbito ocorreu no dia 4/3/1911, pelas 10 horas da noite, na rua João Vaz, Cuba, e que o mesmo fez testamento, não deixando filhos. Mais, menciona a naturalidade e filiação, bem como a condição de viúvo de Emília Augusta Garcia Pêgo, e ainda que foi sepultado no cemitério de Cuba. Do testamento de Fialho, escrito a 1 de março, conclui- -se que uma das suas preocupações era o irmão Joaquim Tomás, um incapacitado, a quem contemplava, entre outros legados, com o “usufruto, enquanto vivo for” de Montinhos Velhos, herdade situada na freguesia de Selmes, que passaria depois a Maria Teresa Bico, que com ele vivia e fora criada. Quanto a esta herdade, Fialho adquiriu-a após a morte da mulher, sabendo-se que a arrendou a terceiro por escritura de 15/9/1904. Por outro lado, adquiriu igualmente duas parcelas de terra a Val de Rocim, em 1897, somando ambas 394 mil réis. A riqueza que Fialho obteve por morte da mulher, conhecida como abastada proprietária, é também matéria de especulação, mas uma atenção a esses bens não cabe neste texto.

 

A propriedade seria significativa, e Fialho acrescentou- a, mas falar de uma casa abastada só faz sentido por comparação com outros proprietários. Fontes impressas: Jornal “A Folha de Beja”, Beja, nº. 37, 14 de setembro de 1893, p.1; n.º 39, 28 de setembro de 1893, p.3; n.º 45, 9 de novembro de 1893, p.1; n.º 46, 16 de novembro de 1893, p.3; 4 de outubro de 1894, p.3; jornal “O Operário”, Beja, n.º11, 12 de março de 1911, p.2; jornal “O Século”, Lisboa, n.º 10497, 5 de março de 1911, p.3; revista “O Ocidente”, n.º1160, 20 de março de 1911, http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/Ocidente/Ocidente.htm Fontes manuscritas: Arquivo Distrital de Beja – Paroquiais Vila de Frades (batismos, casamentos, óbitos) e Cuba (óbitos); PT-Adbja- NOT-Cncub03-001-0053-CX0005; Arquivo Municipal de Cuba, Fundo: Administração do Concelho de Cuba, SC:C Notariado Privativo, SR:001 – Registo de Testamentos – Cx.13. Lv. 082 [1887-1888], Cx 014 – Lvs 103,104 [1910-1911, 1911-1912]; Repartição de Finanças, Cuba – Autos de Liquidação de Contribuição de Registo por título gratuito, Processo n.º 245, 1886 a 1887 Bibliografia: TAQUENHO, Vicente (1917). “Correspondência”. In: BARRADAS, António e SAAVEDRA, Alberto (eds.) (1917). Fialho de Almeida: In Memoriam (no sexto aniversário da morte do escritor). Porto: Tipografia da Renascença Portuguesa, pp. 275-280.

Texto: Francisca Bicho

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