No quadro da exposição “Beja Republicana”, organizada pela Câmara Municipal de Beja em finais do ano passado, no Centro Unesco, foi publicado, além do catálogo da referida mostra, o livro A I República na Geografia Urbana de Beja – Um roteiro republicano da cidade, com textos e seleção de documentos de Constantino Piçarra. Trata-se, segundo o investigador, de um texto que visa contribuir, à sua medida, para o conhecimento da história da cidade nos primeiros anos do século XX “e com isso resgatar do esquecimento memórias de espaços, de pessoas e de acontecimentos que fizeram Beja Republicana”. A forma encontrada para a concretização do projeto foi evidenciar os espaços públicos, ruas e praças, palco de acontecimentos marcantes na cidade durante a I República (1910- 1926). Pretendeu-se fazer um roteiro que ajude residentes e visitantes a percorrer pontos marcantes da Beja desse período. O livro apresenta uma proposta de quatro percursos, que não invalidam outros que o texto possa sugerir. Chamando a atenção para o interesse da obra, o “Diário do Alentejo”, com base em textos da publicação, da autoria de Constantino Piçarra, e fotos, cedidas ao autor pelo Arquivo Municipal de Beja, “mostra” aqui alguns lugares da Beja Republicana.
Texto: Carlos Lopes Pereira
Fotografias: Arquivo Municipal de Beja
PRAÇA DA REPÚBLICA
A antiga praça D. Manuel I, rebatizada praça da República a 10 de outubro de 1910, era o centro da vida política da cidade. Localizava-se ali a câmara municipal, onde foi proclamada a República a 6 de outubro. Os paços do concelho testemunharam os debates entre representantes das duas correntes republicanas dominantes, os unionistas, o setor mais conservador, e os democráticos. O edifício acolhia serviços como o tribunal judicial e as conservatórias dos registos civil e predial. Até aos anos 20 albergou também a biblioteca e o museu municipal. A centralidade da praça da República resultava ainda de ser ali que começavam ou terminavam os grandes atos de massas dos republicanos bejenses. Como a concentração, na tarde 5 de outubro, que festejou a proclamação da República; a manifestação de 14 de janeiro de 1912 para comemorar a laicização do Estado; a receção a Sidónio Pais, em fevereiro de 1918; e a comemoração do armistício, a 11 de novembro de 1918, no final da I Guerra Mundial. Na praça havia estabelecimentos comerciais (alfaiatarias, farmácia, barbearia), a cadeia civil e escritórios de advogados. Estavam também instalados a Associação Comercial Bejense, o jornal “O Bejense”, órgão do Partido Unionista, e o liceu.
PORTAS DE MÉRTOLA
A centralidade política da praça da República prolongava-se pelas ruas a ela ligadas, como as do Correio, da Moeda, dos Mercadores e da Cadeia Velha. Com ligação à rua dos Mercadores (hoje das Lojas), surgia a rua do Touro, que ia desembocar junto ao largo de S. João e à praça Morais Sarmento, em frente ao antigo convento da Conceição. As Portas de Mértola, juntamente com as ruas do(s) Sembrano(s), dos Mercadores e de Mértola eram o centro comercial da Beja Republicana. Ali se encontravam, entre outras, a loja Singer com máquinas de costura, a Vacaria Manaças, que vendia adubos químicos, e a Relojoaria Silva. Na rua de Mértola, de uma janela da casa de habitação de Francisco Pereira Coelho – advogado mertolense, deputado e governador civil de Beja, além de diretor de “O Bejense” –, na noite de 5 de outubro de 1910, o já nomeado governador civil de Beja, António Aresta Branco, falou à multidão em festa pela vitória republicana. Fazendo a ligação entre as Portas de Mértola e a praça Jacinto Freire de Andrade (hoje praça Diogo Fernandes), havia a rua do Cativo (hoje rua Capitão João Francisco de Sousa). Aqui encontravam-se o Centro Democrático, inaugurado por Afonso Costa em 1912, e o Parque Vista Alegre.
LARGO DE SANTA MARIA
Chegando ao fim da rua da Capelinha, vindo da rua Ancha, chegava-se ao largo de Santa Maria. Era também conhecido por largo do Porvir, por no local estar instalada a redação, administração e tipografia desse jornal republicano bejense. Quando “O Porvir” foi suspenso no consulado sidonista, juntamente com o encerramento do Centro Democrático, só retomando a publicação a 6 de abril de 1918, publicou-se nas suas instalações o jornal “O Povo Alentejano”, sob a direção de Soveral Rodrigues. Além do jornal, localizavam-se no largo a Associação dos Bombeiros Voluntários de Beja, fundada em 1889; a Caixa Geral de Depósitos, junto à igreja, a partir de meados dos anos 20; a delegação da Cruz Vermelha Portuguesa, pelo menos desde 1915; e algum comércio, como o estabelecimento de J. H. Raposo, de máquinas de costura, espingardas de caça e bicicletas. Era também neste largo que um dos líderes do Partido Democrático, Henrique Silva, tinha o seu escritório de advocacia, o que fazia deste espaço urbano um local de passagem, quase obrigatória, das manifestações organizadas ou apoiadas pelo partido de Afonso Costa.
PRAÇA MORAIS SARMENTO
Saindo da rua do Touro e voltando à esquerda entrava-se na praça Morais Sarmento, hoje largo da Conceição. Ali, mesmo defronte do antigo convento, num primeiro andar, com entrada pela rua 5 de Outubro, como passou a chamar-se a rua dos Infantes, encontrava-se a Sociedade Recreativa e Artística Bejense, fundada em 1893 e refundada em 1909. Ao contrário da sua vizinha Sociedade Bejense, sempre se mostrou comprometida com o ideário republicano, dinamizando a partir de 1914 atividades culturais e recreativas, como bailes de Carnaval e saraus musicais para os associados. A praça, onde se encontravam os Armazéns do Chiado, que em meados da década de 20 passaram para a praça da República, e a Minerva Comercial, onde era impresso o semanário “O Bejense”, era dominada pelo convento de Nossa Senhora da Conceição. Desde a implantação da República que as autoridades locais faziam esforços para incorporar no edifício o museu e a biblioteca municipal. Após um longo processo, tramitado entre Beja e Lisboa, que incluiu visitas de arquitetos e peritos de arte, e depois de obras no monumento, só em 5 de outubro de 1923 foram inauguradas as “novas” instalações da biblioteca municipal. A inauguração do museu realizou-se mais tarde, ainda nos anos 20.
LARGO 9 DE JULHO
Deixando as Portas de Mértola e virando à direita entrava-se no largo 9 de Julho, depois largo de D. Nuno Álvares Pereira, espaço fronteiro ao quartel do Regimento de Infantaria 17. No largo ficava o Hotel Rocha, um dos estabelecimentos hoteleiros da cidade onde pernoitaram hóspedes ilustres, como aconteceu com Afonso Costa. O Regimento de Infantaria 17, que se instalara em Beja em 1889 e que tinha no largo o seu quartel, integrou-se de imediato na nova ordem republicana. A cidade reivindicava a sua permanência, já que se calculava que, em 1912, por ali passariam 1200 recrutas em dois períodos de instrução, o que traria impactos positivos para a economia local, do comércio à agricultura. Mas as instalações do quartel eram exíguas e, apesar das intervenções dos deputados bejenses, pelo menos até 1915, propondo soluções, os batalhões de recrutas em vez de virem para Beja foram enviados pelo governo central para Elvas…
PRAÇA JACINTO FREIRE DE ANDRADE
Descendo o largo de S. João pelas ruas de S. João ou do Buraco, chegava-se à praça Jacinto Freire de Andrade, hoje praça Diogo Fernandes (Jardim do Bacalhau). Foi um dos pontos centrais da Beja Republicana a partir de 26 de junho de 1913, data da inauguração da sala de espetáculos Éden Teatro, um edifício em madeira, propriedade da empresa de Luís Pereira e Companhia. Segundo a imprensa da época, tratava-se de um elegante teatro destinado a animatógrafo, onde os filmes eram acompanhados por um grupo de orquestra residente, sob a direção do maestro Manuel Lourenço Romeiro, que no intervalo das sessões de cinema brindava o público com concertos musicais. O animatógrafo funcionou até 1922, data em que foi removido, num contexto em que a construção do Pax Julia avançava. Antes da inauguração do Éden Teatro, a praça era um espaço de concentração das grandes manifestações cívicas de Beja.
JARDIM PÚBLICO
Das Portas de Mértola até à estação e caminho-de-ferro seguia-se pela rua 9 de Julho. A denominação de 9 de julho em dois espaços públicos da cidade referia-se à data de uma batalha, em 1833, entre absolutistas e liberais, nos arredores da cidade, então dominada pelos miguelistas. Voluntários liberais de Beja, Serpa e Mértola constituíram uma força armada, comandada pelo tenentecoronel serpense Francisco Romão de Góis, e tentaram libertar a cidade, mas foram repelidos pelos absolutistas, que contaram a ajuda de tropas que se encontravam em Messejana e vieram em seu socorro. A data, considerada heroica pelos liberais, foi assumida pelos republicanos bejenses como um marco na luta pela liberdade. Seguindo então pela rua 9 de Julho e antes da descida para a estação, ficava o Jardim Público, com o seu coreto, onde a banda do Regimento de Infantaria 17, no verão e na primavera, brindava a população da cidade com concertos musicais.
ESTAÇÃO DE CAMINHO DE FERRO
A estação de caminho-de-ferro de Beja era um dos lugares mais movimentados da cidade durante a I República. Sem água canalizada nem luz elétrica e mal servida de outros transportes, a cidade ligava-se ao resto do País quase exclusivamente por comboio. Nos primeiros anos da República partiam e chegavam diariamente à cidade sete comboios: três oriundos e com destino a Lisboa, Vila Viçosa, Setúbal e linha do Norte; dois fazendo a ligação Beja/Algarve e Algarve/Beja; e mais dois no percurso Beja/Moura e Moura/Beja. Além deste tráfego, passavam ainda por Beja, com paragem à segunda e sexta-feira, o comboio rápido Algarve/Lisboa e à quarta-feira e ao sábado o rápido Lisboa/Algarve. Além do movimento dos viajantes, a estação foi palco de grandes concentrações populares que vinham receber destacadas figuras republicanas de visita a Beja ou de passagem para o Algarve.
LARGO DE SANTO AMARO
No largo de Santo Amaro encontravam-se algumas agremiações desportivas da cidade, como o Ginásio Clube Bejense, coletividade com um papel importante no incremento do ciclismo. Uma prova ciclística organizada conjuntamente pelo Ginásio Clube Bejense e por Luís da Rocha Júnior, conhecido por sport man e destacado ativista do Partido Democrático, teve lugar em 25 de fevereiro de 1914, e ligava Beja e São Matias, ida e volta, num percurso de 20 quilómetros, só para atletas não medalhados. Foi ganha por João Manuel Conde de Matos, que fez a corrida numa hora, dois minutos e cinco segundos. Era também no largo, com o Jardim dos Aliados ao centro, que estavam instalados o celeiro comum, na antiga igreja de Santo Amaro, e a sede da Associação de Classe dos Sapateiros, que para ali foi transferida proveniente da rua João Conforte, onde se localizou inicialmente. Também por esta razão, o largo de Santo Amaro foi sempre um espaço muito concorrido por ocasião das comemorações do 1.º de Maio na cidade.