Diário do Alentejo

O fascínio das palavras no destino de uma camponesa alentejana

06 de dezembro 2019 - 11:00
Antologia poética de Virgínia Dias será apresentada no domingo, em Peroguarda

Como um Pedaço de Terra Virgem é o nome da antologia poética de Virgínia Dias que será apresentada no próximo domingo, às 16:00 horas, na Casa do Povo de Peroguarda, no concelho de Ferreira do Alentejo. A obra, com prefácio, escrito em 2018, de José Mário Branco, reúne cerca de uma centena de poemas que ao longo do tempo têm conquistado inúmeras figuras ilustres da cultura portuguesa como o etnólogo Michel Giacometti, o cineasta António Reis ou o músico recentemente desaparecido.

 

Texto José Serrano

 

As palavras sempre fascinaram Virgínia Dias. Desde o tempo em que, “pequenina”, ouvia sentada ao colo da sua avó, na Casa do Povo de Peroguarda, aldeia onde nasceu e vive há 84 anos, as deixas eloquentes dos atores de teatro, os monólogos sentidos dos poetas populares que encantavam a população que, de casa, trazia a cadeira para assistir aos espetáculos.

 

No dia seguinte, depois de a sua avó se despedir dela para ir trabalhar – “era lavadeira numa casa rica”, – a menina transformava-se em atriz, com um “fato de representação” feito de uma toalha que punha sobre os ombros, mais “um trapinho qualquer que tivesse ali à mão”. Uma descontraída solenidade artística de brincadeira de criança: “Eu vinha de lá com aquilo no sentido, punha-me a inventar palavras que ‘dissessem’ umas com as outras, que tivessem aquela música que eu gostava de ouvir”.

 

No fim da primeira classe, sabendo já juntar cada uma das letras, numa manhã, sentada no poial de sua casa, passou por ela o senhor abastado da terra, “a única pessoa com estudos na aldeia – tinha o quinto ano” –, o “Diário do Alentejo” debaixo do braço: “Então rapariga, já sabes ler?”. Virgínia Dias respondeu que sim e recitou-lhe então um poema do jornal. No fim da leitura, o agricultor, incrédulo com o desempenho, considerou: “Olha, olha, que bem que a poesia fica na voz desta criança”. Desde aí, o dizer de um poema impresso do diário tornou-se um hábito quase quotidiano, na rua que ficava diante da “horta grande” do abastado, “masmuito simpático”, senhor.

 

Depois da declamação, os primeiros versos originais de Virgínia Dias haveriam de ser escritos a giz, com o sangue ainda a ferver, na ardósia, o caderno escolar da altura, após uma reprimenda física “injusta”, da sua professora da terceira classe: “Senhora dona Isabel/ não tem culpa a minha mão/ da senhora não ter quem queira/ morar no seu coração/. Mas se a senhora tem mágoas/ que a consomem de desgosto/ não são lenço de limpar lágrimas/ a minha mão e o meu rosto”. O poema, jocoso de indignação, mostrou-o à mãe que a aconselhoua apagá-lo rapidamente da pedra – “Não vás tu apanhar ainda mais”.

 

Um episódio que não refletia, em nada, o apego e o êxito que Virgínia tinha nos estudos, ao ponto de a sua professora da quarta classe, outra que não a “senhora dona Isabel”, chamar o seu pai à escola, aconselhando-o a considerar a continuação dos estudos da filha e a explicar-lhe “a pena que seria” se assim não fosse. “Naquele tempo perguntavam às crianças o que queriam ser quando fossem grandes, como se as crianças que nasciam de gente pobre, como eu, pudessem escolher… Mas ainda assim acalentei o sonho de prosseguir os estudos. Para um dia ensinar, como professora, o que eu queria ser quando fosse grande, se pudesse ter escolhido”.

 

Um sonho desfeito imediatamente a seguir à conclusão da quarta classe. “Tinha 11 anos no dia em que o meu pai me disse que tinha de ir trabalhar, que não havia dinheiro para os estudos e que, por isso, teria de acompanhar, na manhã seguinte, as mulheres na monda. Chorei a noite toda. Hoje penso se não teria sido o melhor que me aconteceu, porque eu aprendi a amar, tanto, o campo.O céu azul, o canto dos pássaros, as flores… Se tivesse ido estudar talvez esse amor não se revelasse assim”.

 

O campo tem sido, aliás, uma das principais musas inspiradoras da poesia de Virgínia Dias, também ela cantadeira, que continua, ainda hoje, “a escrever na cabeça”. “Sempre o fiz assim, porque muitas as vezes a mão não acompanha o pensamento, que chega a galope. Memorizei todos os meus poemas, só alguns passei, eu mesma, para o papel”. Uma necessidade artística que não confidenciava a ninguém: “No campo, a trabalhar, fazia poemas, mas tinha sempre vergonha de os dizer, de os mostrar a alguém, com receio de me julgarem. Eu era só a Virgínia camponesa, uma mulher sem estudos…”.

 

O segredo, bem guardado até aos seus 50 anos, “já eu era avó”, foi descoberto pelo seu marido, que encontrou três dos poucos poemas postos no papel pela mão da sua mulher. “O Agostinho perguntou- me se eu sabia que poesia era aquela, com palavras que parecia ‘mesmo a minha maneira de falar’”. Um dos poemas encontrados no fundo de uma gaveta era dedicado à mãe da poetisa. Da minha roseira preferida/ Eu colhia as mais bonitas rosas/ Econtente, carinhosa/ Corria a levar- tas, Mãe querida/. Nos olhos via-te lágrimas orgulhosas/ Nos lábios um sorriso de alegria/ Mãe! Tu sabias que aquelas rosas/ Só para quem eu muito amava, as colhia/. Hoje é o dia da Mãe, do mesmo jeito/ Fui colher para ti daquelas rosas/ Só que não as pus junto ao teu peito/ Fui depô-las sobre a campa em que repousas/. Já não lhes sorriste com amor/ Nem disseste: Lindas! Que maravilha!/ Sobre elas só silêncio e a dor/ Das lágrimas da tua filha”.

 

Virgínia Dias terá, diz, centenas de poemas memorizados, um rol poético que relata tempos árduos, melancolia e contentamentos, que foi edificando ao longo de décadas. Uma companhia que ao longo da sua vida tem sido distinguida com vários prémios e menções honrosas: “A poesia sempre me libertou, às vezes faz-me chorar das saudades que me traz, mas é sempre uma libertação”. E dá um exemplo: “A minha gente diz que eu cozinho muito bem, mas eu não gosto de cozinhar, quando o estou a fazer ‘liberto- me’ logo. Uma das minhas poesias mais bonitas – no filme ‘Encontros’ estou a dizê-la ao José Mário Branco – é a ‘Quando ao nascer o sol rompia’. Fi-la ali [aponta para a bancada da cozinha] a fazer umas sopas de tomate. Estava um calor tão grande, tão grande, que o meu pensamento abalou e eu fui viver um dia de ceifa. É um poema em que eu estou lá inteira, de corpo e alma”.

 

“Quando ao nascer o sol rompia” é, precisamente, um dos poemas reunidos na antologia poética de Virgínia Dias, intitulada Como um Pedaço de Terra Virgem, recolhida por Paulo Lima e Marta Ramos, uma edição em livro, com prefácio de José Mário Branco, e CD, que será apresentada no domingo, dia 8, às 16:00 horas, na Casa do Povo de Peroguarda. Antecipando a exposição da apresentação da sua obra, Virgínia Dias diz-se “assustadíssima e tão pequenina, tão pequenina”, esperando, contudo, que quem a ler e escutar possa entender um “bocadinho” a sua alma e olhar para o campo “não com o mesmo desprezo como antigamente se usava olhar para as camponesas, mas com amor”.

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