Diário do Alentejo

A conquista das oito horas nos campos do sul

02 de dezembro 2019 - 15:50

Em maio de 1962, dezenas de milhares de trabalhadores agrícolas entraram em greve. O protesto "abalou" o Sul do País e terminou com o fim do trabalho de sol a sol. Militante comunista a viver na clandestinidade depois de fugir da prisão de Caxias num carro blindado que havia pertencido a Salazar, António Gervásio desempenhou um papel de liderança nos protestos. A sua biografia O Alentejo e a Luta Clandestina – António Gervásio, um Militante Comunista, escrita pelo jornalista Luís Godinho, diretor do “Diário do Alentejo”, será lançada na próxima quarta-feira. Pré-publicamos um excerto do livro.

 

Se em Almada e no Barreiro, zonas de forte influência do PCP e local de destino de muitos trabalhadores alentejanos, os protestos atingem grandes dimensões, é nos campos do Alentejo que a adesão dos operários agrícolas à reivindicação das oito horas de trabalho mais se fará sentir. O número de trabalhadores envolvidos não é consensual. Terão sido seguramente mais de 200 mil a entrar em greve. Num relatório datado de junho de 1962, e que circulou de forma clandestina, em cópias datilografadas, António Gervásio anota os locais dos protestos. Com a imprensa silenciada pela censura, é dele o relato mais fiável das lutas de massas de abril e maio de 1962 nos campos do Sul. Uma luta que ele próprio liderou.

 

Nalgumas localidades do Baixo Alentejo – como Pias, Vale de Vargo, Ervidel, Rio de Moinhos, Jungeiros, Montes Velhos e Messejana – a paralisação dos operários agrícolas no 1.º de Maio é total. Em Beja aderem de cerca de mil pessoas. Em Aldeia Nova e Baleizão, António Gervásio contabiliza uma adesão superior a três mil pessoas. Já em Aljustrel, onde nos últimos dias de abril se tinha instalado um clima de medo, a paralisação passa despercebida. Mais a norte, as adesões mais significativas acontecem em Montemor-o-Novo e Escoural, com os trabalhadores a repetirem a greve uma semana depois, mas também em Alcáçovas, Valverde, Avis, Alcórrego, Portalegre. No Couço, "muitas pessoas estavam dispostas a arrancar em manifestação pela terra. As pessoas mais receosas e alguns camaradas nossos opuseram-se. A GNR não queria [que se realizasse um] piquenique, mas o povo insistiu e a GNR respondeu que o fizessem, mas que não houvesse manifestações". A presença dos militares faz-se notar durante todo o dia.

É no concelho de Alcácer do Sal que a repressão é mais intensa nesse início de maio de 1962, contabilizando-se a presença de mais de vinte agentes da PIDE e cinco dezenas de militares da GNR. Todas as pessoas que passam sobre a ponte que cruza o Sado são identificadas. No 1.º de Maio, mais de 30 mil trabalhadores do litoral alentejano entram em greve. Posser de Andrade, proprietário da Herdade da Palma, próximo de Alcácer do Sal, chama a PIDE e a GNR, que tinha um posto no interior da propriedade, numa tentativa já desesperada de impedir a paralisação. Alguns trabalhadores são levados para o posto, onde são agredidos. António Gervásio relata o caso de um rapaz que, depois de espancado, foi obrigado a escrever os nomes das pessoas que conhecia, sendo que apenas conhecia os pais, os irmãos e os companheiros de trabalho. "Marcolino Bento, de 17 anos, e Jacinto Veríssimo foram barbaramente espancados pela PIDE ficando em estado grave. Devido aos ferimentos não puderam seguir para a prisão". Sorte diferente é a de 28 trabalhadores (entre os quais Manuel Dionísio, de 80 anos) que são detidos pela GNR e entregues à polícia política.

No relatório elaborado na altura, António Gervásio descreve os momentos que se seguiram: "Quando os presos eram metidos nos carros celulares, o povo acorreu exigindo a sua libertação. As mulheres agarraram-se aos polícias exigindo a libertação dos seus filhos, maridos e pais. Os polícias empurravam-nas com os pés". Algumas mulheres deitam-se no chão na tentativa de impedir que os carros avancem. "Francisco Posser, responsável por estes acontecimentos, receando a ira do povo, safou-se para Cascais, fazendo constar que não tinha responsabilidade pelo que se tinha passado".

 

Ainda com os ânimos ao rubro, no dia 2 de maio os operários agrícolas recusam-se a trabalhar mais de oito horas e exigem um aumento de salário. Apresentam-se às 7h45. Começam a trabalhar um quarto de hora depois. Na Herdade da Palma, ainda hoje pertencente à família Posser e uma das maiores explorações agrícolas do País, a sineta toca de acordo com a jornada de trabalho do sol a sol. Toca às 10:30 horas, a hora a que os trabalhadores costumavam parar para almoçar. Ninguém o faz. Interrompem para almoço às 12:00 horas. Retomam às 13:00. E às 17:00 horas regressam a casa. A GNR é chamada ao local mas entende não haver alteração da ordem pública e remete o assunto para o Instituto Nacional do Trabalho (INT), uma forma habilidosa de aliviar a pressão e evitar novos confrontos.

 

"Os agrários e alguns capatazes não querem aceitar a vontade unânime dos trabalhadores, recorrendo a ameaças e à repressão", escreve o jornal “O Camponês”, na edição de maio desse ano. Entre os maiores proprietários de terras, além dos Posser, encontram-se as famílias Núncio e Ramada Curto. Como nem a intervenção da GNR convence os trabalhadores a fazerem um horário superior às oito horas, é chamado de urgência o governador civil de Setúbal para uma reunião no edifício da autarquia local.

 

A administração da Herdade da Palma decide, então, publicar um edital onde os trabalhadores são ameaçados com despedimento e prisão caso não voltem atrás. "Os patrões, apoiados pelas autoridades, estão firmemente decididos a destruir esta onda de subversão e de maldade que, se é verdade que está a ser orientada por alguns inimigos da Nação Portuguesa, está também a arrastar para a desgraça muitas pessoas inocentes e contrariadas. E estão dispostos a seguir isto nem que, para o efeito, tenham de parar, por quanto tempo for necessário, todos os serviços da herdade, entregando depois o caso às autoridades competentes", refere o edital mandado afixar pelos patrões. Se o efeito pretendido era vencer o braço de ferro pelo medo, o resultado foi o contrário. Não só se mantiveram as oito horas como os ranchos de trabalhadores das Beiras e do Algarve se solidarizaram com os do Alentejo.

A 2 de maio, trabalhadores do Torrão, Santa Catarina, Grândola, Sines, Odemira, Alvalade do Sado e Lousal, entre outros, seguem o exemplo dos de Alcácer do Sal e recusam cumprir mais do que oito horas diárias. Ao mesmo tempo são exigidos, e conquistados, alguns aumentos salariais, com os ordenados a serem fixados nos 28 escudos para os homens e nos 25 escudos para as mulheres.

A escolha do mês de maio para o levantamento do operariado agrícola do Sul decorre de uma opção política, associando-o ao Dia Internacional dos Trabalhadores, cujas celebrações estavam proibidas pelo regime, mas justifica-se essencialmente por questões de estratégia da própria luta pois, como referido, trata-se de um altura de maior aperto nos trabalhos agrícolas, com ceifas, debulhas, apanha de arroz, tira de cortiça. "Isto foi estudado com vista a forçar os patrões a cederem". António Gervásio enfatiza que não se tratou de uma ação espontânea ou voluntarista mas, pelo contrário, "uma das lutas mais discutidas, que mais tempo levou a preparar e que mais trabalhadores e militantes do PCP envolveu na sua organização".

Em Montemor-o-Novo, à paralisação no 1.º de Maio segue-se uma nova greve, uma semana depois. Dia 9, vários ranchos regressam ao trabalho mas sob condição de cumprirem apenas oito horas e de os salários serem aumentados para 40 escudos. Como os patrões não cedem, os operários agrícolas abandonam o trabalho e regressam a casa. Pelo caminho, mobilizam outros trabalhadores. O número de pessoas em greve ascende a cerca de cinco mil. Ao fim de quatro dias de paralisação acaba o sol a sol e os salários são aumentados.

 

"A notícia da luta pelas oito horas espalha-se como vento", escreve António Gervásio. E chega agora a Setúbal, Palmela, Pinhal Novo, Moita, Montijo e Coruche onde, a 28 de maio, são criadas comissões de levantamento de ranchos com o objetivo de parar a monda de arroz. Os ranchos de fora, dispostos a trabalhar de sol a sol, são obrigados a deixar a região. A Coruche chega, entretanto, um enorme dispositivo da GNR, com militares armados com metralhadoras. Há prisões. Alguns grevistas têm de fugir. Mas milhares de trabalhadores mantêm-se irredutíveis, acabando por conseguir impor o novo horário de trabalho.

 

(...)

 

Em poucas semanas, a greve dos operários agrícolas impõe as oito horas de trabalho no Alto Alentejo e no litoral alentejano, em boa parte do Baixo Alentejo, parte da Extremadura, do Ribatejo e do Algarve. "Dezenas e dezenas de ranchos, ao abandonarem o trabalho, transformaram-se em amplos grupos ou comités de greve. Eles percorreram as herdades e as localidades vizinhas mobilizando os seus camaradas para o movimento grevista. ‘Não trabalhemos mais de sol a sol! Só trabalhemos com as oito horas!’ foi o grito unânime, a consigna comum que uniu todo o proletariado agrícola do sul num potente movimento de massas", refere António Gervásio. A mobilização dos trabalhadores é acompanhada, como vimos, por ações intimidatórias junto dos ranchos oriundos de outras regiões do País, em particular das Beiras, que se deslocavam para efetuar trabalhos agrícolas no Alentejo e que, nalguns casos, não queriam aderir às greves. "O movimento era potente, dava confiança e impunha respeito. Os ranchos de fora, nuns casos, aderiram ao movimento, noutros casos abandonaram o trabalho e foram para as suas terras".

 

Num texto escrito em maio de 1969, pouco antes de voltar a ser preso, António Gervásio refere que os grandes proprietários e o governo se "assustaram" com o movimento dos operários agrícolas. "Nos primeiros tempos tomaram um conjunto de medidas com vista a abafá-lo, no sentido de que as oito horas não vingassem. Fizeram dezenas de prisões. Muitas localidades foram tomadas militarmente pelas forças repressivas da PIDE, GNR e PSP. Fizeram espancamentos. Recorreram aos despedimentos em massa. Não empregavam pessoal do Sul e iam buscá-lo a outras províncias (...) a conquista das oito horas não foi fácil. Custou muito trabalho, prisões, espancamentos, mas os trabalhadores venceram".

 

CONJUNTURA MENOS ADVERSA

Em maio de 62, a conjuntura apresentava-se menos adversa do que noutras ocasiões, uma vez que o regime tinha sido claramente desafiado em ações como os assaltos ao quartel de Beja e ao paquete Santa Maria. "Agrava-se a crise da ditadura e o seu isolamento nacional e internacional. Crescia a luta operária nas empresas e nas ruas. Crescia o descontentamento popular e a força da oposição". Desta vez, ao contrário do que tinha sucedido nas ocasiões anteriores, "havia organização e direção", o surgimento da Rádio Portugal Livre (RPL) permite contornar a censura e as reivindicações em causa correspondiam, desde há muito, a aspirações profundamente sentidas pelos camponeses do Sul. Por outro lado, a conquista das oito horas de trabalho no Litoral alentejano – amplamente difundida pela imprensa clandestina afeta ao PCP, com particular destaque para a RPL – galvaniza os protestos. Em poucos dias, são uma realidade em localidades como Santa Margarida do Sado, Escoural, Viana do Alentejo, Portel, Évora, Azaruja, Avis, Mora e Alcórrego.

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