Diário do Alentejo

Opinião: Raças autóctones e alterações climáticas

23 de julho 2019 - 10:30

Texto Claudino Matos, diretor-geral da ACOS – Associação de Agricultores do Sul

 

A produção animal contribui para as alterações climáticas e é, ao mesmo tempo, afetada por este fenómeno. Existe hoje em dia no seio da comunidade científica um grande debate sobre esta dicotomia. Quais as estratégias a utilizar para, por um lado, mitigar o impacto da produção animal no ambiente, e, por outro, como é que as populações animais se podem adaptar a um ambiente em mudança devido às alterações climáticas.  Existem, contudo, muitas incertezas, sendo que algumas metodologias utilizadas para estudar o tema recorrem a cenários e pressupostos que não se aplicam do mesmo modo à diversidade e à complexidade de situações que se encontram no terreno. Há uma certa tendência para generalizar conclusões, sem contar com as especificidades dos sistemas de exploração onde os animais são explorados, bem como os recursos genéticos utilizados.

 

Há, por outro lado, alguma escassez de informação, principalmente, no que respeita à função dos recursos genéticos locais. É geralmente aceite que as raças autóctones, mais adaptadas a ambientes pobres e hostis, serão as que terão maior probabilidade de subsistirem no futuro. No entanto, para avaliar a adaptabilidade destas populações, há necessidade de recolher informação, que não se limita apenas à necessária para a sua caracterização produtiva, reprodutiva e genética. Para complementar este conhecimento, a FAO (Food and Agriculture Organization) recomenda uma metodologia que designa por landscape approach (abordagem paisagística), que consiste em recolher vários níveis de informação, como sejam o sistema de produção, a localização e dispersão geográfica, aspetos socioeconómicos, o maneio, as condições de solo, clima, vegetação, recursos hídricos, etc..

 

Há uma multiplicidade de estratégias que poderão ser exploradas na produção animal para a mitigação e adaptação às alterações climáticas. Apenas serão referidos alguns aspetos, de modo resumido que, do ponto de vista genético, poderão ser adotados, centrando a ideia no potencial dos recursos genéticos locais.

 

Adaptação

Na perspetiva da adaptabilidade, a utilização de raças locais bem inseridas e exploradas nos seus habitats é defendida, hoje em dia, como uma estratégia de desenvolvimento rural e como garante de segurança alimentar. A sua importância ganha ainda mais relevância no futuro devido ao previsível crescimento da população humana, associado ao correspondente aumento das necessidades alimentares. A diversidade genética representada pelas inúmeras raças de animais domésticos, assim como a variabilidade genética dentro de cada população, deverão ser encaradas num contexto da evolução dos atuais sistemas de exploração, condicionados por vários fenómenos, sendo as mudanças ambientais motivadas pelas alterações climáticas talvez os mais significativos.

 

A adaptabilidade define-se como a capacidade duma população para produzir e reproduzir-se num determinado ambiente. No âmbito das alterações climáticas, com o previsível aumento da temperatura, os carateres de interesse poderão ser a resistência ao calor, à seca e às doenças. Nesta perspetiva, o valor seletivo ou de adaptabilidade das populações locais coloca-as em vantagem comparativamente às raças exóticas. Existem vários exemplos em que as deslocações de raças produtivas para ambientes mais pobres redundaram em insucesso.

 

Os carateres funcionais de adaptabilidade apresentam heritabilidades baixas, pelo que a exploração da variabilidade genética dentro de uma determinada raça através da seleção conduz a ganhos genéticos baixos. Uma estratégia alternativa consiste na utilização de cruzamentos entre raças. Os recursos genéticos locais, bem adaptados ao ambiente de produção, servem como raças maternas para cruzamento com machos de raças exóticas mais produtivas, tirando assim partido da complementaridade entre raças e do vigor híbrido.

 

A introgressão (transferência de um gene de uma raça para outra utilizando retrocruzamentos entre híbridos e sua original geração progenitora) de genes maiores relacionados com características de adaptabilidade (exemplo: gene de tolerância ao calor em bovinos) poderá também ser uma estratégia a utilizar.

 

Mitigação

Do lado dos impactos, a FAO projeta cenários em que o setor da produção animal contribui com 18 por cento para a emissão de gases de efeito estufa, contabilizando, numa escala global, a utilização das áreas de pastoreio, a área utilizada com culturas destinadas à alimentação animal, a produção de estrume e a fermentação entérica. Se limitarmos a nossa avaliação à emissão de gases de efeito estufa de origem animal, e no caso dos ruminantes em particular, a Global Research Alliance on Agricultural Greenhouse Gases da Plataforma para a Agricultura Sustentável recomenda a utilização de recursos genéticos mais eficientes em termos produtivos (isto é, redução do rácio inputs/outputs) e a seleção de animais com emissões de gases de efeitos estufa mais baixos. O ganho genético obtido por geração é baixo, mas é cumulativo. Um exemplo demonstrativo do sucesso desta estratégia é o de vacas de leite nos Estados Unidos (nos últimos 60 anos obteve-se uma redução das emissões de metano de 40 por cento por quilo de leite produzido).

Dum modo geral, as raças autóctones apresentam parâmetros produtivos inferiores a genótipos exóticos, e, portanto, são menos eficientes. No contexto de emissões de gases de efeito estufa estariam, à partida, em desvantagem comparativamente a genótipos exóticos. Há, no entanto, outros fatores que têm de ser equacionados como atrás foi referido no âmbito da abordagem paisagística dos sistemas de exploração. Se considerarmos as raças inseridas nos seus sistemas de produção, uma estratégia que pode ser utilizada é o cruzamento entre raças como forma de incrementar a produtividade global do sistema e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. No entanto, esta opção deverá ser bem avaliada sob pena de erosão de recursos genéticos locais. Em suma, as raças autóctones têm um papel importante a desempenhar na mitigação e adaptação às alterações climáticas. A utilização de estratégias genéticas, seja por via da seleção, seja pela via do cruzamento, são viáveis e necessitam de ser desenvolvidas e adaptadas aos vários sistemas de produção. A recolha de informação para uma caracterização global dos recursos genéticos locais é crucial para definição das melhores alternativas para enfrentar as alterações climáticas no futuro.

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