Diário do Alentejo

Cumplicidades políticas… há 2000 anos!

01 de setembro 2025 - 08:00

Texto | José d’Encarnação - Arqueólogo

 

Por se tratar de mui desajeitada pedra que, provavelmente, um dia até escacilharam para dela fazerem cunho de abóbada; por ter, devido a isso, sofrido tratos de polé, e poucas letras lhe restarem – não mereceria, de facto, a atenção de algumas linhas de texto.

 

Decerto foi isso que aconteceu, nessas mudanças de espólio do Palácio Episcopal do Senhor Dom Frei Manuel do Cenáculo para Évora: deixaram da mão a coitada, que já tivera como destino consolidar o alicerce duma construção.

Sucedeu, porém, que o senhor bispo, ainda que vendo-a assim tão maltratada, não esteve com meias medidas e mandou que a desenhassem e que constasse o seu achamento na rua do Touro, no alicerce das casas de José Joaquim de Oliveira, nesta cidade de Beja.

Como se vê pelo desenho, que tem o número 43 na pasta que o prelado nos deixou e está na Biblioteca Pública de Évora, pouco se enxerga ler que jeito tenha. Frei Manuel do Cenáculo ainda acreditou que ali se falava de um tal Clódio mas nada mais adiantou.

Coube ao investigador alemão Emílio Hübner dar conta, no relatório que, em 1861, apresentou à Academia das Ciências de Berlim, que, com um pouco de imaginação e alguma sabedoria, esta pedra romana com letras poderia ser o testemunho vivo da homenagem que um servo, Modesto de seu nome, teria prestado, a expensas suas, ao seu senhor, um cidadão muito possivelmente chamado Clódio Quadrado e que fora edil, função que aparecia nomeada isoladamente, em boa letra e bem centrada, na linha três.

Nada de especial até aqui, pois que, amealhando pecúlio ao longo dos anos, um servo poderia dar-se ao luxo de gastar parte dele em gesto seguramente de gratidão.

Há, no entanto, um pormenor não de somemos: é que Quadrado recebe a homenagem na qualidade de edil! E esse aspecto carece de ser bem assinalado, pela significativa importância que detém. Daí estar isolado e centrado na linha!

Todavia, antes de se explicar o que é isso de ser edil e o que poderia estar, afinal, por detrás da (aparentemente singela) homenagem de um servo ao seu senhor, importa que se diga ter sido aceite pelos investigadores subsequentes a interpretação inicial proposta por Hübner.

Assim, ele próprio a incluiu, com o n.º 50, no seu Corpus das Inscrições Latinas da Península Ibérica publicado em 1869. E daí passou, sem objeções, para o catálogo das inscrições latinas da Espanha romana elaborado por José Vives, em 1971, sob o n.º 552. O professor Júlio Mangas, que escreveu um livro sobre escravos e libertos na Espanha romana, também datado de 1971, não se esqueceu de aludir a esta epígrafe na página 62, por referir um servo, datando-a do século I. Também Julian de Francisco Martin, no n.º 1 da revista “Memorias de Historia Antigua” (1977, pág. 238) cita Cláudio Quadrado como edil de Pax Iulia, acrescentando: “Contamos com um Lúcio Clódio Salviano, filho de Marco, o mesmo que o nosso edil e também da tribo Galéria, como ele, flâmine de Pax Júlia. É, pois, lógico pensar que estavam aparentados e, inclusivamente, que se trata de dois irmãos. Mas não temos informação acerca do montante que o servo gastou”.

Anote-se que esta referência de Julian de Francisco se baseia numa informação hipotética, o que não invalida a afirmação de que haja, em Pax Iulia, outros membros desta família Clódia.

A leitura interpretada de Hübner não sofreu, por conseguinte, contestação e, à falta de alternativa, foi aceite e integrada em posteriores catálogos das inscrições romanas, nem sempre os autores se dando conta de estarmos, de facto, perante um texto deveras de interpretação duvidosa.E onde está, então, a cumplicidade política de que se fala no título?

O servo poderia estar grato ao senhor; poderia ter no bolso a quantia necessária para pagar ao canteiro. Mas… o seu senhor não era um senhor qualquer! E o cargo que ocupa no momento em que a homenagem lhe foi feita é um cargo municipal de grande importância, porque o edil “mexia” nas finanças locais! Não dizemos nós, hoje, por vezes, que o presidente da câmara é o edil máximo?...

Se o servo se sai bem do empenho, melhor se sai o seu senhor, porque vê o seu nome perpetuado num monumento público! E – aqui para nós – será grande maldade pensar que o próprio senhor secretamente instigou o servo a tomar a iniciativa de o homenagear? Não encontramos nós homenagens desse tempo em que o homenageado, “contente com a honra, pagou as despesas” e faz questão de isso mandar gravar na inscrição? Porque seria? E quando, por exemplo, na cidade romana de Balsa (a atual Tavira) Mânlia Faustina consegue que os decuriões (o equivalente à nossa assembleia municipal) a autorizem a organizar um banquete público em homenagem ao irmão, Tito Mânlio Faustino, “modelo de piedade”, que foi duas vezes duúnviro (magistrado municipal) terá sido esta uma homenagem… inocente? Não estariam os Mânlios Faustinos em campanha eleitoral?Essas são, na verdade, as cumplicidades políticas doutrora. Muito diferentes das de hoje?

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