Diário do Alentejo

A democracia “esbofeteada, às claras e sem pudor”

20 de junho 2025 - 15:00
Agressões a cidadãos por grupos de extrema-direita espoletam manifestação de repúdio também em BejaFoto | José Serrano

“Não queremos viver num país do medo”. Foi este o mote para o encontro de cidadãos, no passado domingo, dia 15, registado em várias cidades, em protesto contra os recentes episódios de violência exercida de forma gratuita por grupos conectados com a extrema-direita. Em Beja, a concentração fez-se junto ao Museu Rainha Dona Leonor e contou com a presença de centena e meia de cidadãos.

 

Texto e Foto | José Serrano

 

Com a estátua da rainha Dona Leonor como testemunha, o átrio do museu homónimo, em Beja, congregou, na tarde do passado domingo, cerca de centena e meia de pessoas, unidas em torno da repulsa pela brutalidade física exercida, no dia 10, ao ator Adérito Lopes, junto ao teatro A Barraca, em Lisboa, e a duas voluntárias de uma associação que distribuíam ajuda alimentar a pessoas em situação de sem-abrigo, no Porto, agressões, essas, praticadas por grupos conectados com movimentos neonazis.

A concentração, intitulada “Não queremos viver num país do medo”, que foi replicada, no mesmo dia, em várias cidades portuguesas, teve o principal intuito de manifestar “o repúdio total a qualquer tipo de violência que tem vindo a ganhar um espaço neste país que não lembra ao diabo”, sublinha Ana Ademar, atriz, de 44 anos, considerando que as “inaceitáveis” agressões, recentemente registadas, estão “claramente” amparadas na normalização de um discurso político de ódio”, vindo de um partido com “60 deputados na Assembleia da República [AR], que abre portas à normalização de tudo aquilo que, até agora, era inaceitável”. Ana Ademar, considerando que “há que parar isto o quanto antes”, e que a incivilidade se está a propagar “com mais facilidade” do que as “boas intenções e os valores”, revela temer que ataques semelhantes se possam alastrar até às localidades do interior – “não tenho dúvidas de que, mesmo em cidades pequenas, há malta fechada em casa a destilar fel no computador, basta olhar para as redes sociais de Beja…”.

Abrigado do sol pela sombra das frondosas árvores que ficam defronte ao museu regional, continuam a chegar ao espaço homens, mulheres, crianças aninhadas em carrinhos de bebé e de mãos dadas aos pais. Da coluna de som, que servirá mais tarde para intervenções de vários cidadãos, uns mais anónimos do que outros, sai a voz de Ermelinda Duarte, na interpretação de um tema que marcou o derrube da ditadura e o panorama musical pós 25 de Abril – (…) como ela somos livres/somos livres de voar (…).

Da Revolução dos Cravos, recorda-se Lina Gomes, de 77 anos, reformada. “Eu vivi no fascismo e o meu receio é que o pessoal se esqueça do que custou ganhar a liberdade...”. Uma “perda de memória” que a manifestante diz provir de diferentes causas. “Há uma camada que tenta esquecer-se do que foi viver em ditadura e uma outra que nunca aprendeu, pois nunca ninguém lhe ensinou – porque os pais e os avós não se sentam à volta de uma mesa, com os filhos e com os netos, para lhes transmitir aquilo por que passaram, o que tiveram de sofrer para que se pudesse viver em liberdade, que se não for defendida se perde num instante. E, assim, as pessoas acreditam num partido e no seu discurso de ódio apresentado nas televisões e nas redes sociais. Embarcam nessas falácias. Mas quando a perda de liberdades e de direitos lhes chegar a casa, nessa altura, perceberão…”.

Lina Gomes teme, num tempo próximo, a possibilidade de um crescendo de episódios de agressão, pela aproximação de duas novas campanhas eleitorais, Autárquicas e Presidenciais. “São momentos que podem proporcionar este tipo de atos – repare-se que estas agressões aconteceram uma semana a seguir às eleições legislativas. Não é coincidência. Isto é tudo uma questão política”, acentua.Para Rui Teixeira, de 59 anos, militar na reserva, as diversas concentrações congéneres, por todo o País, representam, denunciando os atos perpetrados, “a gota de água que fez transbordar o copo”. Na realidade, diz, “o que nós temos assistido, de há um tempo a esta parte, é, por um lado, um ataque, claro, a todas as estruturas culturais independentes, e à retórica de um partido, contra tudo o que tem a ver com cultura, com liberdade, com a capacidade de cada um decidir o que é melhor para a sua vida, que começa a incitar a alguma violência”.

Desta forma, Rui Teixeira refere-se aos atos de brutalidade que se assistem como a consequência, “clara”, de um determinado discurso político. “A normalização de uma forma de estar faz com que quem é violento, e que até agora se sentia retraído pela censura social às suas atitudes, ache perfeitamente normal que, hoje, um namorado possa agredir uma namorada porque não gosta da maneira de ela se vestir ou das pessoas com quem ela fala, que se invada a apresentação de um livro, sendo um tema do qual ‘eles’ – órfãos de um 24 de abril qualquer – não gostam, e se insulte as pessoas que lá estão. E, portanto, seria ‘normal’ que, mais tarde ou mais cedo, começasse a haver agressões físicas às pessoas”.

Também João Barreira, de 42 anos, técnico superior do supracitado museu, pensa que estes atos de violência gratuita refletem a oratória de um partido que “não se assumindo, abertamente, de extrema-direita”, defende “todo esse tipo de ideais, relacionados com a intolerância – no limite com a violência” –, seja pela cor da pele, orientação sexual ou política. “Determinado discurso que, até há bem pouco tempo, não era aceitável, tornou-se um discurso mainstream, um discurso que as pessoas, hoje, acham legítimo e aceitável ter-se publicamente. Começamos a perceber que existe aqui qualquer coisa que está a acontecer, uma mudança no comportamento de muita gente, organizada ou não, que permite a extrema-direita ter, cada vez mais, o à vontade para fazer este tipo de abordagens, para agredir”.

Numa das intervenções mais aplaudidas do encontro, Margarida Duarte, de 36 anos, coordenadora da Bela Companhia de Teatro, da Associação Sénior de Castro Verde, resumiu, de forma poeticamente dolorosa, os atos repudiados. “Quando um ator é agredido, não está só em causa o seu corpo ferido. O que está ferido não é só ele. É a nossa liberdade de expressão. É a nossa dignidade de poder criar. É a ideia de cultura, enquanto espaço de pensamento livre, de encontro. É a própria democracia que é esbofeteada, às claras e sem pudor”.

Por entre a tardada, ouve-se, agora, a voz cantada de Jorge Palma, que ecoa da reivindicativa coluna pelas ruas quentes da cidade – (…) e acabaste por perder a liberdade, a caminho da glória/ai, Portugal, Portugal (…).

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