Diário do Alentejo

vindimas

24 de agosto 2024 - 08:00
Apanha da uva começa cada vez mais cedo devido às alterações climáticas e a novas castas
Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

As alterações climáticas e a introdução de novas castas têm vindo a antecipar, nos últimos anos, a apanha de uva na região, à semelhança do que acontece no resto do País. Nas áreas de influência da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito e da Cooperativa da Granja-Amareleja as vindimas arrancaram nas duas primeiras semanas do mês, devendo prologar-se até finais de setembro. Do ponto de vista da qualidade, adiantam os responsáveis, perspetivam-se “boas colheitas”. 

 

Texto | Nélia Pedrosa Foto | Ricardo Zambujo

 

À semelhança de outras regiões do País, também nas vinhas arrendadas por Teresa Caeiro, sócia-gerente da adega Gerações da Talha, em Vila de Frades, Vidigueira, a apanha da uva tem vindo a começar cada vez mais cedo. Devido às alterações climáticas, justifica a enóloga de 29 anos ao “Diário do Alentejo”, “as temperaturas altas fazem com que a maturação da uva esteja pronta também mais cedo”. Mas se na presente campanha arrancaram no início do mês, no ano passado começaram “uma semana antes, ainda em julho”, relembra a produtora vinícola, frisando que com a antecipação das colheitas “a acidez da uva está perfeita para fazer a fermentação”, não sendo necessário “fazer qualquer correção”, tornando a uva, assim, “mais fidedigna”.

“O nosso objetivo é fazer os vinhos [de talha] o mais naturais possíveis. Não utilizamos leveduras, não utilizamos nada”, reforça.No total, Teresa Caeiro dispõe de cinco hectares de vinha – arrendadas ao avó Arlindo Ruivo, nome para sempre associado ao vinho de talha –, destinando-se as uvas exclusivamente à produção deste vinho que recorre a técnicas de fabrico artesanais, herdadas do período romano. Uma produção “muito pequenina, de cerca de 12 mil garrafas”, sublinha a enóloga, adiantando que estimam colher, nesta campanha, “uns 12 mil quilos” de uvas de castas autóctones, um volume, todavia, significativamente inferior ao registado no ano passado. A quebra, revela, é de “mais de 60 por cento”.

“Estávamos até a transformar dois hectares de vinha em biológico e nesses tivemos uma quebra de 100 por cento. Quando chegámos a fevereiro tudo indicava que ia ser um ano excelente, porque até lá choveu imenso e os solos estavam com muita água. Como usamos uva de sequeiro – não usamos rega – isso para nós é muito importante e dá a entender que há de ser um bom ano quando o inverno é muito chuvoso, que é o que se quer. De fevereiro até abril não choveu e continuou tudo perfeito, mas a partir de abril, maio, tivemos um mês e meio de muito sol e muita chuva. Isto é muito mau para a uva porque cria condições de humidade e os fungos, o míldio, o oídio, desenvolvem-se e matam o cacho. Então, perdemos grande parte da produção. Nós e muita gente aqui nas redondezas”, esclarece.

Ainda que a produção tenha sofrido uma quebra expressiva, o mesmo não será de esperar relativamente à qualidade das uvas, garante Teresa Caeiro. “A uva que sobreviveu a isso ficou com muito mais qualidade – não há podridão nos cachos, estão a desenvolver-se muito bem, estão muito bonitos – e acho que isso se pode vir a traduzir em muito bons vinhos”. Por isso, reforça, está “muito feliz” com a presente campanha, “com a qualidade dos mostos” que tem na adega. “Estou muito contente com o vinho que entretanto já fizemos. Está realmente com qualidade”.

Depois de uma primeira fase de colheita, que deverá prolongar-se por mais duas semanas, será feita “uma pausa de quase um mês”, para, no final de setembro, retomarem a vindima de uma uva destinada “a um vinho que tem perfil mais mel e mais uva passa”.

Nas vinhas de Américo Palma, nas imediações da vila de Vidigueira, a colheita de uva também tem vindo a ser antecipada, tendo-se iniciado na segunda-feira, 19, cumprindo o calendário “de vindimas programadas” da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito (Acvca), de que é sócio há cerca de três décadas. “Estamos a colher a casta mais adiantada – o Aragonês – destinada à criação de vinhos especiais que temos na nossa adega”, conta. Na próxima semana começará com as restantes castas, “o Antão Vaz, a rainha das castas [na região], o Roupeiro, o Perrum, um pouco de Verdelho e também o Alicante Bouschet, uma casta também muito produtiva aqui na zona”, esclarece o produtor vitícola de 65 anos.

Detentor de 23 hectares de vinha, Américo Palma espera vir a colher, na presente campanha, “à volta de nove, 10 toneladas de uva por hectare”, se não houver qualquer contratempo. “Pode ainda haver um granizo, que até acabar a apanha ainda temos um mês e tal, pode haver uma intempérie, como já tem surgido na altura da campanha e a produção fica totalmente estagnada”, refere, sublinhando que este tem sido um “ano problemático” para o setor, devido “às doenças, como o míldio”, apesar de, no seu caso, ter conseguido “salvar a produção”, ao contrário “de alguns colegas”. “Posso dar-me por feliz hoje, amanhã não sei”, reforça. Ainda assim, comparativamente ao ano transato, e “pelas análises já feitas”, deverá registar uma “quebra” de produção, até porque 2023 “foi um ano excecional”, recorda o produtor. No que respeita à qualidade, adianta, está a ser “um ano bom”.

 

“Elevado volume de stocks” desvaloriza vinhos De acordo com o presidente da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito, que conta atualmente com 262 associados, que “exploram uma área de cerca de 1400 hectares de vinha”, a antecipação das vindimas “deve-se, por um lado, às alterações climáticas e ao seu impacto na nossa atividade e, por outro, à introdução de novas castas, mais precoces”.

A apanha na área de influência da Acvca teve início no passado dia 8 com a casta Verdelho, à qual se seguiu a Fernão Pires, “as castas que, nos controlos de maturação que diariamente o nosso departamento técnico efetua em campo desde há várias semanas, revelaram os índices de maturação mais favoráveis às pretensões da equipa de enologia”, explica José Miguel Almeida. Seguir--se-ão agora “diversas castas, como, por exemplo, o Aragonês e o Syrah”, refere, salientando que “os controlos de maturação continuam e permitem avaliar continuamente o momento em que as castas, nos diferentes terroirs, atingem o momento mais adequado para serem vindimadas”.

A expectativa para este ano, de acordo com o responsável, é que “a produção possa atingir os nove milhões de quilos – apesar da desidratação e escaldão que se têm verificado na fase final do ciclo das videiras –”, um pouco inferior à de 2023, que se situou nos “9,8 milhões de quilos”. Do ponto de vista qualitativo, acrescenta, perspetiva-se “uma boa colheita”. “A enorme quantidade de parcelas, castas, solos, práticas culturais, permitem-nos, a cada ano, ter um leque muito vasto de opções enológicas”, justifica.

Quanto aos principais entraves que se colocam ao setor, José Miguel Almeida aponta “o elevado volume de stocks existente a nível nacional”, que “tem um efeito contrário à valorização dos vinhos, sobretudo, os vinhos tintos”. E prossegue: “Se a isto juntarmos o facto de o País continuar a importar vinho, sobretudo, de Espanha, a preço inferior aos nossos custos de produção, temos um cenário de grande dificuldade para o setor vitivinícola”. Adicionalmente, assiste-se “a um decréscimo do consumo de vinho a nível mundial, o qual tem sido acompanhado também pela redução de áreas de vinha nos vários países produtores”. “Um dos pilares para a valorização dos vinhos nacionais e, consequentemente, do setor, é o esclarecimento do consumidor, que muitas vezes consome vinho importado e pensa que está a consumir vinho nacional. Esse esclarecimento, a par de ações de fiscalização cada vez mais robustas e eficazes por parte das entidades competentes, revela-se essencial”, conclui.

Ao contrário da Acvca, na área geográfica de influência da Cooperativa da Granja-Amareleja, que conta com cerca de 90 “sócios ativos” e onde as vindimas tiveram início no dia 12, “uma semana mais cedo” do que no ano passado, “haverá um aumento” de produção, justificado, principalmente, “por novas vinhas ou vinhas restruturadas a entrar em produção”, explica o presidente da cooperativa, adiantando que se espera, igualmente, “uma maior qualidade”. “Felizmente, as castas estão a chegar mais equilibradas e ‘pausadas’ na adega”, frisa Manuel Bio, que destaca como principais entraves no setor “o preço dos vinhos e das uvas no Alentejo, a concorrência de outras regiões (nacional e importação) e a falta de apoios (preço dos fatores de produção muito mais caros do que na vizinha Espanha) e de investimento promocional nos mercados internacionais”.

Para a produtora da adega Gerações de Talha, por sua vez, o maior desafio prende-se com o baixo poder de compra dos portugueses, o que acaba por afetar o seu negócio de vinho de talha, um produto de nicho, tendo em conta que “são produções baixas e em que tudo é feito de forma manual”, pelo que “o vinho vai sair a um valor mais elevado do que os outros vinhos, que são massificados”. Por isso, a estratégia de Teresa Caeiro passa por colocar o produto em “restaurantes com sommeliers, que poderão apresentar e explicar o vinho… restaurantes [com estrelas] Michelin, etc.”. Para além do mercado nacional, a Gerações da Talha comercializa para a Alemanha, Bélgica, Brasil, Coreia do Sul, Estados Unidos da América e Japão, representando já as exportações “mais de 50 por cento” do total de vendas. A escassez de mão de obra é outro dos entraves apontados pela enóloga. “Aqui, em Vila de Frades, ainda consigo arranjar umas velhotas, ou uns miúdos mais novos, que me ajudem e que ainda querem ganhar o seu dinheirinho, mas é cada vez mais raro”.

Já Américo Palma, à semelhança do presidente da Acvca, destaca, como problemático, principalmente “nos últimos dois anos”, “o excesso de vinho” importado, algum “vendido ao desbarato”. “É lamentável… se temos matéria-prima boa, natural… enfim, isso devia ser regulado”, defende.

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