Ana Rato faleceu na passada semana, dia 27 de junho, aos 58 anos, vítima de doença prolongada. Reconhecida fadista, granjeou ao longo da sua vida artística os mais entusiásticos aplausos em palcos de todo o País, tendo vencido, inclusive, em 1993, a Grande Noite do Fado de Lisboa. O “Diário do Alentejo” homenageia a artista, reapresentando a entrevista que deu, em 2022, a este jornal.
Texto Luís Miguel Ricardo
Nasceu em Lourenço Marques, Moçambique, em 1965, mas desde os quatro anos que atracou ao Alentejo, trazida pelos pais, naturais de uma aldeia nas proximidades de Beja.
E foi pela planície baixo alentejana que cresceu, estudou, se fez rapariga, se fez mulher e que ingressou no mundo do trabalho, na função pública, mas sempre com um companheiro que lhe enchia o coração, um companheiro inseparável chamado Fado. Um companheiro que a levou a conhecer outros lugares, outras pessoas, que a marcaram para todo o sempre. Um companheiro a quem se diz grata por muita coisa boa que lhe aconteceu na vida: a participação na grande Noite do Fado de Lisboa, onde conseguiu arrecadar um terceiro e um primeiro lugar; o convite para abrir a mesma Grande Noite, nos três anos seguintes às distinções; o convite para cantar na Grande Noite do fado, no Coliseu do Porto; o convite para cantar no aniversário da Amália Rodrigues, na Praça do Município, em Lisboa; a participação num filme francês; a participação nos prémios Bordalo Pinheiro, no Casino Estoril, onde teve a oportunidade de cantar ao lado de Carlos Zel, fadista da sua admiração; o convite, do já falecido Francisco Nicholson, para integrar o elenco da Revista “Lisboa Meu Amor”, que infelizmente não pode aceitar; o convite para o aniversário da Rádio Voz da Planície; o convite para cantar no Luxemburgo; a participação no Festival B, realizado em Beja; a participação no espetáculo de homenagem ao Paulo Abreu Lima; e, mais recentemente, o convite para participar no espetáculo dos Cantadores do Alentejo. Um companheiro que também lhe possibilita dar um pouco mais de si aos outros, abraçando projetos solidários, sobre os quais afirma ser gratificante sentir que com o Fado se consegue ajudar alguém que precisa.
Eis a fadista Ana Rato na primeira pessoa.
Quando e como o gosto pela música e pelo fado começou a ganhar protagonismo?
O gosto pela música começou muito cedo, muito influenciada pelo meu pai, que também cantou num grupo coral alentejano. Cresci ao som do cantar dolente do nosso povo. Entretanto o fado foi entrando na minha vida, e foi tomando cada vez mais força, e foi ao fado que me entreguei de corpo e alma. Tendo tido como principal influência a Amália Rodrigues, fui depois descobrindo outros nomes, como Beatriz da Conceição, Maria Teresa de Noronha e a grande Cidália Moreira que, para mim, cantavam com o coração.
E onde começa a história da fadista Ana Rato?
Comecei com um convite para cantar na Casa da Cultura de Beja, onde me apresentei muito a medo, com os grandes nomes da cidade, nessa altura: Manuel Bartolomeu, António Cláudio, António Heleno, Carlos Matos, Francisco Sobral, o pai e o filho; e com os guitarristas Jorge Franco, Carlos Franco e o nosso querido Goinhas Palma, que me ensinou muito, e a quem fiquei muito grata.
Depois, foi seguir em frente. Cantei em festas, restaurantes, casamentos, não importava onde, eu queria mesmo era cantar, porque era isso que me dava prazer.
Um dia, estava a folhear uma revista e vi que estavam abertas as inscrições para a Grande Noite do fado de Lisboa (1992). Resolvi inscrever-me, sem dizer a ninguém. E lá fui eu à descoberta, levando a minha irmã como claque. E foi tão bom. Foram noites mágicas, onde conhecemos tanta gente e fizemos amizades que nunca mais esquecemos. E fiquei em terceiro lugar. No ano a seguir concorri novamente, e aí sim, consegui o primeiro lugar.E o fado continuou pela vida fora. Sempre acompanhando a gente nova que ia entrando e que gostava de cantar, como eu, com muito valor. Foram noites maravilhosas. Não só aqui, mas também no Algarve. Concorri a alguns concursos, onde consegui o primeiro, segundo, terceiro, ou até quinto ou sexto lugar. Mas não importava. Eram noites ricas de conhecimento e amizade, pelo convívio que traziam. Depois, por aqui, as “Noites ao fresco”, organizadas pela Câmara Municipal de Beja, continuam a dar-nos a oportunidade de podermos levar o nosso fado a toda a gente.
Dos trabalhos realizados, algum a destacar?
Há um trabalho que destaco pela importância que teve para mim. Foi o espetáculo de homenagem ao nosso querido Paulo Abreu Lima. Foi tão gratificante poder cantar os poemas do Paulinho, ao lado da minha querida Mafalda Vasques, que foi quem me convidou para embarcar neste sonho com ela. E também com outros convidados de peso, que eram, ao mesmo tempo, amigos do Paulo. Grandes músicos, sob a direção musical de Válter Rolo, fizeram com que a noite fosse mágica, e fez-nos perceber que a obra de Paulo Abreu Lima é eterna.
Viver no Alentejo representa uma fonte de inspiração ou de limitações para a carreira?
Viver no Alentejo representa uma fonte de inspiração, mas também de limitações. Fazer carreira artística, só mesmo na capital, que é o centro de tudo, como todos nós sabemos. Para eu poder seguir uma carreira teria de largar tudo, e eu nunca consegui largar a minha família, a terra onde cresci, no fundo, o lugar onde sempre fui feliz. Eu adoro o Alentejo, e não o troco por lugar nenhum. Este sossego, esta qualidade de vida são sem dúvida uma inspiração, e que o digam os grandes nomes artísticos da nossa terra. Tenho a certeza que foi aqui que se inspiraram para depois seguirem o seu caminho na música.
Que importância tiveram as distinções obtidas, para a afirmação no mundo do fado?
Para mim, a melhor distinção é conseguir tocar o coração das pessoas que me ouvem. Ao longo da minha vida, sempre tentei transmitir aos outros aquilo que o fado me fazia sentir. No fado vivem-se os poemas que se cantam ao som do trinado das guitarras.
Como surge a participação no cinema?
A minha participação no cinema foi um pouco ao acaso. Na altura, eu trabalhava na Direção de Estradas de Beja, com uma colega que, por acaso, tinha uma filha atriz, Elsa Valentim, que, por sua vez, trabalhava com a Patrícia Vasconcelos, filha do cineasta António Pedro Vasconcelos. Na altura, a minha colega soube, através da filha, que a Patrícia Vasconcelos ia fazer uns castings para um filme francês, “Les Amants du Tage”. O papel era de uma fadista que cantava numa tasca em Alfama. E depois esses fados fariam parte também da banda sonora do filme. Era uma participação pequena, mas ao mesmo tempo era uma aventura nova, que eu queria muito experimentar. Quando a minha colega me desafiou para que eu fizesse o casting, não acreditei muito na possibilidade de poder ficar com o papel, mas lá fui. Os castings decorriam num hotel em Cascais, sob a supervisão do realizador David Delrieux. Quando entrei, passou por mim uma cara conhecida, que me fez pensar duas vezes antes de seguir em frente. Nada menos que a dona Celeste Rodrigues. E eu comecei a pensar: «se mandaram embora a irmã da Amália, o que vou eu ali fazer?» Mas fui e fiquei. Sorte a minha, porque queriam para o papel uma mulher mais nova. E foi muito giro. Passados uns meses enviaram-me uma cassete em VHS, que ainda guardo comigo.
Alguns momentos inusitados vividos ao longo da carreira?
Tenho muitas histórias engraçadas. Nas noites de fado, com a companhia da minha família fadista, vivem-se momentos de muito boa disposição e, por vezes, com situações muito caricatas. Tenho uma, que se passou na Grande Noite do Fado, que nunca mais esqueci. Como já tinha referido, a primeira vez que concorri foi 1992 e fiquei em terceiro lugar. O primeiro, segundo e terceiro lugares tinham direito a entrevistas e fotos nas revistas. No ano a seguir, quando cheguei, a primeira pessoa que vi foi o jornalista que me havia entrevistado no ano anterior. A sua primeira pergunta foi: «o que é que está aqui a fazer outra vez?» Eu disse: «vim concorrer.» E ele voltou à carga: «mas não ficou o ano passado em terceiro lugar?» E eu respondi com uma vozinha quase sumida: «vim buscar o primeiro lugar.» E à minha resposta, o jornalista soltou uma estrondosa gargalhada, que me fez arrepender do que tinha dito. E pensei para mim: «meu deus, o que é que eu fui dizer?» Foi um ano em que concorreram todas as associações de Lisboa, cada um e uma a cantar melhor que o outro, e eu a concorrer por conta própria. Mas no final da noite, após a vitória, foi esse mesmo jornalista que me veio dar o prémio, acompanhado de um outro “estrondoso” pedido de desculpas, por ter duvidado da minha convicção.