Diário do Alentejo

As estórias de quem não vai passar a consoada em família

23 de dezembro 2023 - 20:00
natalIlustração | Susa Monteiro

Natal é sinónimo de família reunida. De partilha à mesa. De aconchego. Mas há quem, por variadíssimas razões, não passe a noite de consoada junto dos seus, dos que lhe são mais queridos. É o caso de Emanuel, Casimiro, Mário e M., que contam ao “Diário do Alentejo” como será a sua noite de 24.

 

Texto | Nélia Pedrosa Ilustração | Susa Monteiro

 

Emanuel Garcês já perdeu a conta às noites de consoada que passou a trabalhar. Primeiro, no Hospital de São João, no Porto, cidade de onde é natural. Depois, no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, onde trabalha há cerca de 13 anos. Antes de ser pai, embora gostasse do Natal, não lhe “custava assim tanto”, admite o enfermeiro de 46 anos. Com o nascimento dos filhos – atualmente com 11 e 14 anos –, as coisas mudaram. “É uma festa que as crianças até valorizam ainda mais do que nós, com a família e tudo. Custa-nos um bocadinho mais, até porque temos que estar sempre a dividir-nos, porque a minha mulher é pediatra” na mesma unidade hospitalar.

Emanuel Garcês entrará ao serviço às 16:00 horas do dia 24 e só sairá às 8:30 do dia seguinte, sensivelmente à mesma hora que a mulher iniciará o seu turno. Houve anos em que o enfermeiro trabalhava no Natal e a mulher no fim de ano. Mas, assim, sublinha, acabavam por nunca conseguirem “estar juntos numa festa em casa”. Optaram então por trabalhar os dois no mesmo dia, “embora desencontrados”, “para os miúdos nunca estarem sem ninguém em casa”. “Assim temos os dois o fim de ano livre e para o ano estaremos os dois livres no Natal”, salienta.

Para compensar o facto de a família “não estar toda junta no Natal”, Emanuel Garcês e a mulher conseguiram juntar “um fim de semana livre e duas ou três folgas” e rumaram, recentemente, ao estrangeiro, a uma vila Natal. “Para os miúdos poderem viver um pouco um ambiente pré-natalício, para nos divertirmos todos em família, porque já sabemos que agora começamos na correria”.

Apesar de tudo, diz, os filhos “já se habituaram” às ausências dos pais, “porque quando nasceram já era assim”. E os familiares que vêm passar o Natal com eles a Beringel, onde residem, “também já estão habituados a estes esquemas”. Emanuel Garcês nota, no entanto, que para o filho mais novo, principalmente, “não deixa de ser traumático”. “Não é que seja uma coisa que se calhar lhes vai alterar o futuro… e não é só com o Natal… o meu mais novo, muitas vezes, estão a chegar as seis da tarde, e pergunta se algum de nós vai fazer noite, porque já stressa um bocado com isso, ressente-se um bocadinho de não ter sempre o pai e a mãe, juntos, em casa, à noite. Quando sabe que não fazemos noite fica todo contente, porque acendemos a lareira, ficamos todos na sala e há ali um ambiente mais calmo”.

No serviço, para “atenuar um pouco” o facto de não passarem a noite de consoada com as famílias, explica o enfermeiro, “normalmente, as equipas juntam-se e combinam levar alguma comida e sobremesas”, e quando “o tempo permite fazem um pequeno convívio”. Mas, como trabalha na urgência pediátrica, “é muito incerto, depende muito do serviço”, frisa. “Há anos que corre muito bem, e temos um movimento pequeno na urgência. Há outros anos em que é muito complicado e acaba por não se conseguir quase sequer ir comer uma sobremesa, uma coisa assim. Depende muito do que vai aparecendo”, diz, admitindo que o que mais lhe custa quando está de serviço na consoada “é ver, às vezes, famílias que era suposto estarem em casa descansadas a festejar o Natal, de repente, a serem obrigadas a irem à urgência por uma situação que surge, porque quem trabalha em pediatria sabe que para as crianças é muito complexo passar a noite de Natal num hospital ou ficar lá internado”.

Para Casimiro Nunes, de 39 anos, chegado de Angola em setembro de 2022 para estudar no Instituto Politécnico de Beja (IPBeja), este vai ser o segundo Natal distante dos “pais, irmãos e amigos”. “Quando chega a este momento… sinto uma ligeira tristeza, é uma saudade enorme, porque é uma experiência nova, nunca tinha passado um Natal distante da minha família. Uma pessoa sente um vazio enorme”, admite o estudante do 2.º ano do curso técnico superior profissional de Gestão das Organizações Sociais.

Mas, por outro lado, sublinha, os alunos estrangeiros acabam por se sentirem “aconchegados” nesta época do ano, porque “se unem e confraternizam, partilham novas experiências”, o que sempre ajuda “a suprir um pouco essa saudade que nós sentimos dos familiares que deixamos para trás”. A sua noite de consoada será passada, assim, em princípio, com outros alunos “de várias nacionalidades”, de “várias culturas”, sempre com o apoio da equipa dos serviços de ação social do IPBeja, o que permite “aguentar esta fase”. Com os pais e irmãos falará por videochamada, “para desejar um feliz Natal” e lembrar que “esta é uma data em que se reforçam os laços de amor e união”, diz, sublinhando que das “comidas tradicionais de Angola habituais na ceia de Natal” da sua família, do que mais sente falta é de kizach, confecionado “com folhas de mandioca, óleo de palma e feijão”. “É muito bom, tem um sabor espetacular”.

“O jogo de cartas saiu assim para mim” Desde o falecimento da mãe, em 2012, que Mário Azevedo passa a ceia de Natal sozinho. E a noite do próximo domingo muito provavelmente não será exceção. O ex-taxista nascido em Moçambique há 63 anos e a viver em Santa Vitória (Beja) há 27, depois de ter estado uns anos emigrado na África do Sul, recebeu um convite de um vizinho para passar a consoada com ele, mas ainda não sabe se irá. “Caso a filha dele, que vive em Vila Nova de Gaia, também venha passar o Natal, talvez depois tenham a casa cheia e já não me podem receber”, explica. Se assim for, se tiver de passar mais uma consoada sozinho, a ementa já está bem definida: “Vou buscar ali à mercearia uma posta de lombo de bacalhau, faço um bocadinho de couve-flor, tudo regado com azeite e vinagre, será a minha ceia. E no dia a seguir faço uma mão de borrego assada com batatinhas”.

Solteiro e sem filhos, a família de Mário Azevedo resume-se atualmente a um irmão, seis anos mais novo, que vive em Inglaterra, com quem mantém contacto telefónico mas que não vê desde o enterro da mãe, e ao filho deste. “Falo com o meu irmão, mas eles têm a sua vida, têm o círculo da família ali…, “justifica. Tem ainda primos no Algarve e em França, mas nunca lidou com eles. A solidão, frisa, é o que, de facto, lhe custa mais nestas épocas festivas, “mas foi sempre isso, não ter mulher e família e tal…”. Por isso, “tem de se aceitar. A vida, o jogo de cartas saiu assim para mim”, diz, resignado. Na sua opinião, o ideal seria, à semelhança do almoço de Natal promovido todos os anos pela União das Freguesias de Santa Vitória e Mombeja – e no qual marca sempre presença –, que na noite de consoada “as pessoas que estão sozinhas se juntassem para a ceia”. Dos natais passados com os pais, com quem vivia, Mário Azevedo recorda “a ceia do dia 24 com o bacalhau e, no dia seguinte, o peru, que era criado no quintal”.

À semelhança de Mário Azevedo, também M.B., de 84 anos, viúvo, residente em Beja, não tem familiares por perto. A filha e as duas netas vivem na Alemanha – país onde esteve emigrado cerca de quatro décadas –, as duas irmãs em Almada e os sobrinhos e sobrinhas em Aljustrel.

Apesar de admitir que gostaria de passar a noite da consoada com as pessoas de quem gosta “a comer uma coisinha boa – a gente aprecia essas coisas todas –”, às vezes, diz o antigo pintor de construção civil, até prefere passar a época festiva sozinho. “Tenho uma vizinha que já me perguntou se eu queria ir lá passar o Natal. Talvez aproveite. Mas se não for, não me importo nada de ficar sozinho. Fico em casa, com a comidinha sempre boa da Cáritas [entregue no âmbito do apoio domiciliário] e se tiver frio vou para a cama”.

A filha só costuma visitá-lo “nas férias de verão” e agora, que vai ser avó pela primeira vez, “também não virá”. “Ela nunca veio passar o Natal, mas a mim não me parece nada mal, porque estou acostumado a isto. Como ela faz anos no dia 25, em princípio sou eu que lhe vou telefonar nesse dia. Mas não digo que não seja ela a ligar na noite. Ela não é desapegada, a minha sorte tem sido ela”.

 

“Há fome em Beja”

 

Campanha da santa casa da misericórdia até dia 26

 

A Santa Casa da Misericórdia de Beja (SCMB) está a deixar, diariamente, num espaço “acessível a todos”, junto ao “jardim do Bacalhau”, no âmbito da campanha “Ser Natal: Oferece com amor, recebe com gratidão”, cerca de 50 quilos de alimentos, como “vegetais, frutas, barritas energéticas, massa, arroz e enlatados”, e também refeições, em “embalagens individuais de takeway” – perto de 150 até à passada terça-feira.

De acordo com Francisca Guerreiro, responsável pelo gabinete de ação social da SCMB, o que é deixado no espaço, principalmente, comida, “vai tudo embora”. Nos “últimos dias”, adianta, “as pessoas esperam à porta que esta abra e vão, principalmente, ao pão, o que é muito impressionante”. “Alguém que vai direito ao pão é alguém que está com fome. Portanto, achamos que há mesmo fome em Beja. Não quero aqui dramatizar muito, mas é a sensação que temos”, reforça, adiantando que “nos 16 anos” que está ligada ao setor social na região nunca tinha sentido “o embate” que sentiu com esta campanha.

A iniciativa, que está a decorrer desde o dia 8 e que chegará ao fim na próxima terça-feira, dia 26, insere-se no “É Natal em Beja”, da responsabilidade da câmara municipal local, e tem como objetivo principal “garantir que o Natal seja uma época mais confortável e digna para todos os membros da nossa comunidade”. Com o lema “Oferece o que tens e recebe o que precisas”, através da campanha são colocados à disposição “excedentes por parte de privados e empresas” e “quem necessita” poderá recolher “bens essenciais, como roupas quentes, calçado, mantas e alimentos”, explica a SCMB.

Segundo Francisca Guerreiro, a comunidade tem-se mobilizado, tem mostrado “que é muito solidária”, mas “com o nosso apelo, às vezes, quase de porta em porta”. A grande preocupação “são agora os últimos dias” da campanha, porque “aí não vamos ter refeições dos restaurantes, porque os jantares de Natal estão a acabar”, frisa. Assim, “alguns elementos da equipa [da SCMB] já se mobilizaram para no dia 24 virem cozinhar e deixarem lá refeições”, adianta a responsável, que apela, no entanto, a que também a comunidade, “quando for fazer o avio da noite de Natal”, compre alguma coisa para deixar no espaço, que está aberto entre as 10:00 e as 21:00 horas. “Se alguém quiser comprar um bolinho rei, uma caixa de broas, um frango assado, qualquer coisa, acho que naquela noite [da consoada] devia haver ali fartura de muita coisa. Para nós não vai ser fácil conseguirmos rechear a loja”.

No final da campanha, será feito “um balanço”, refere Francisca Guerreiro, admitindo que o projeto poderá ter continuidade, “se calhar noutros moldes”, “não com esta frequência e este horário, mas com dias específicos ao longo do ano”. “Quando uma das missões da instituição é realmente esta, quando se percebe que há esta necessidade, não podemos ficar por aqui”, justifica, acrescentando que a “chave” para o problema está “na Rede Social do Concelho de Beja”, uma medida de política social que reconhece e incentiva a atuação das redes de solidariedade no combate à pobreza e à exclusão social com vista à promoção do desenvolvimento social. “Estamos todos [entidades] a tentar colmatar esta necessidade, não tenho dúvidas disto, mas se calhar temos de nos sentar e construir um plano conjunto, saber como é que vamos atuar”.

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