Terminou no passado 31 de outubro mais uma operação “Censos Sénior” da GNR. No distrito de Beja foram sinalizados 3230 idosos a viverem sozinhos e/ou isolados. Mas as ações de patrulhamento e sensibilização a esta população mais vulnerável não se restringem ao mês de outubro; decorrem durante todo o ano, privilegiando o contacto pessoal, de porta a porta. O “Diário do Alentejo” acompanhou uma dessas ações a cargo da Secção de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário do Destacamento Territorial de Almodôvar.
Texto NÉLIA PEDROSA
Pouco passa das nove e meia. A manhã acordou cinzenta, com chuviscos dispersos e uma ventania incomum a requerer cuidados redobrados. Num pequeno híbrido, rumo ao sul do concelho de Mértola, seguem os cabos Fátima Ramos e José Lopes, da Secção de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário do Destacamento Territorial de Almodôvar da Guarda Nacional Republicana (GNR). A operação “Censos Sénior 2023”, que visa deixar alertas e conselhos aos mais idosos que vivem sozinhos e/ou isolados para a necessidade de adotarem comportamentos de segurança, reduzindo o risco de se tornarem vítimas de crimes, terminou há dois dias, a 31 de outubro, mas as ações de patrulhamento e sensibilização a esta população mais vulnerável decorrem durante todo o ano.
O distrito de Beja, onde foram sinalizados 3230 idosos a viverem sozinhos e/ou isolados ou em situação de vulnerabilidade – menos 116 do que em 2022 –, continua a ocupar o sexto lugar na tabela nacional. Desses, 274 (173 sozinhos, 62 isolados e 36 nas duas situações) vivem no concelho de Mértola, um dos mais envelhecidos e despovoados do Baixo Alentejo. Segundo os Censos de 2021, em 10 anos, Mértola perdeu 1,6 por cento da sua população. Os jovens com menos de 15 anos, que na década de Sessenta do século passado representavam 27,9 por cento, eram 8,8 por cento em 2021, e a população com 65 ou mais anos passou, no mesmo período, de oito para 36,8 por cento.
O primeiro monte a visitar nessa manhã fica a 36 quilómetros da Vila Museu, sede de concelho. A maior parte do trajeto é feito em estrada de alcatrão, ainda que bastante estreita e com algumas curvas. O restante, em terra batida, também em caminho estreito e a circundar as cerca de 10 casas baixas caiadas de branco, e mais uns quantos anexos, que compõem o monte, cuja localização omitimos por razões de segurança.
A dificuldade, às vezes, nem é tanto a distância entre a sede de concelho e os montes isolados, assinala a cabo Ramos, se bem que alguns, “já na fronteira com o concelho de Serpa”, distem cerca de 50 quilómetros de Mértola e uma centena de Almodôvar, onde está sediada a Secção de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário, que, para além dos concelhos referidos, também engloba Castro Verde. O pior, garante, são os acessos que obrigam a que percursos que se poderiam fazer, por exemplo, em 20 minutos, demorem “o dobro do tempo ou mais”.
Na “ponta do monte”, lá no alto, com uma paisagem a perder de vista, Porfírio Amândio, de 84 anos, recebe os militares à porta de casa. Solteiro, uma vida inteira ligada ao trabalho do campo, mora sozinho há mais de duas décadas, desde que a mãe faleceu. Já sentado na cozinha, que também faz as vezes de sala, lembra ao “Diário do Alentejo” os tempos em que o monte “era povoado de gente”. Atualmente, em permanência, para além de Porfírio, apenas vive Manuel Mendes, também ele na faixa dos Oitenta. “Nesse tempo havia muito moço. Olhe, havia lá à quina, de onde vocemessês vieram, quatro filhos. A minha mãe teve seis, mas faltaram dois, um deles nem conheci. Esta vizinha aqui [em frente] teve outros seis. Não havia televisão”, diz, bem-disposto. Mas, “os mais velhos morreram”. E os mais novos, como os seus irmãos, “deram em sair” para o Algarve e para o estrangeiro. E Porfírio foi ficando. “Nunca me quis ir embora daqui. Deixei-me estar, aqui ninguém me arrelia, e agora, mesmo que eu queira, as pernas já não me ajudam”. Já só lhe permitem fazer pequenos passeios até à horta, que praticamente não cultiva, mas onde ainda passa algum do seu tempo para se entreter, ou, ladeira abaixo, até à ribeira.
Às vezes, aos fins de semana, os “dois vizinhos da frente”, já reformados, que vivem em Faro e em Quarteira, “lá vão aparecendo com as mulheres, mas não é certo, e estão aí dois ou três dias governando a vida deles, semeiam batatas, essas coisas”, diz o idoso. De vez em quando também recebe a visita do vizinho Manuel, que vive “à entrada do monte”, para dois dedos de conversa. De duas em duas semanas passa uma mercearia ambulante, e, uma vez por dia, com exceção do domingo, a carrinha do apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de Mértola a entregar o almoço.
“Situações de burla são menos frequentes”
Há “pelo menos 15 anos” que a Secção de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário do Destacamento Territorial de Almodôvar faz visitas regulares a Porfírio Amândio. “Este é um dos montes onde vimos mais, porque é mais isolado e o senhor Porfírio está sozinho. Tentamos, pelo menos, passar uma vez por mês, tentamos… mas por ele vínhamos cá todos os dias e ficávamos aqui horas e horas na conversa”, frisa a cabo Ramos. Mas, ainda assim, nunca é de mais lembrar, a cada visita, os alertas e conselhos para comportamentos de autoproteção e segurança. O antigo agricultor “até está bem ciente dos perigos” e “é bastante cumpridor”, salienta a militar, no entanto, por vezes, a solidão fala mais alto. “Ele é cuidadoso. Por exemplo, fecha a porta sempre que sai, nunca deixa a chave na fechadura, e mesmo não sabendo ler nem escrever percebe quando chega uma carta que não é habitual e liga-nos a informar. Mas há uns tempos teve um problema com um contrato que fez com uma empresa fornecedora de energia. Ligou-nos e nós viemos”. Porfírio acabou por conseguir anular o contrato. De acordo com a cabo Ramos, as situações de burla são menos frequentes, “felizmente”, até porque a GNR “faz um esforço acrescido” para alertar os idosos. Contudo, “há ainda aqueles que vão ficando menos despertos para estas questões, e quanto mais necessidade têm de falar mais se deixam cair no conto do vigário. Às vezes respondem a todas as perguntas que lhes fazem pelo telefone e no fim, quando desligam, é que se apercebem que há qualquer coisa que não bate certo e ligam para nós”.
“Essa gente, lá de Lisboa, está sempre a telefonar e eu digo que não quero, digo logo que não”, sublinha Porfírio, garantindo que nunca se sentiu inseguro. “Até à data nunca dei notícia [de problemas], nunca tive azar”, reforça. O “pior” é sentir-se sozinho, por isso, às vezes, telefona para a Secção de Prevenção Criminal de Almodôvar ou para o posto de Mértola, “só para conversar um bocadinho”. Outras vezes, são os cabos Ramos e Lopes que lhe ligam para saber se está tudo bem. “A área é muito grande e a nossa missão não é específica para os idosos, também temos ações nas escolas, no comércio, mas temos o cuidado de quando não conseguimos ir [fazer uma visita] ligarmos para perceber se está tudo bem. Vamos tentando gerir as coisas assim, porque eles vivem muito isolados, estão muito sozinhos, mas nem sempre é fácil porque eles também são muitos”, frisa a militar. E esse vínculo mantém-se, muitas vezes, mesmo quando “já saíram” da área de atuação da secção e “estão a residir com os filhos”. “Ligamos muitas vezes para saber como estão. Como somos sempre os mesmos acabam por criar-se laços que às vezes são muito difíceis de se desfazerem quando eles partem. Isso para nós também é difícil de gerir”, admite.
A visita dos militares ao monte de Porfírio Amândio chega ao fim. As despedidas são sempre difíceis. É a sensação de “vazio” que se volta a instalar. A carrinha da Santa Casa da Misericórdia não deve tardar com o almoço, lembra o cabo Lopes, mas as funcionárias “também não trazem vagar, têm a vidinha delas para governar”, responde, prontamente, o idoso.
Solidão é “a grande queixa”
A solidão é, de facto, a “grande queixa” dos idosos sinalizados pelo Destacamento de Almodôvar da GNR – 915 no total dos três concelhos. Os outros problemas “eles acham que vão resolvendo”, afirma a cabo Ramos. A solidão, muitas vezes, “não têm como a colmatar, porque os filhos estão longe, porque nós não vamos sempre que eles gostariam e eles temem que aconteça alguma coisa e que não tenham ninguém que os socorra”, justifica. E a época do Natal acaba por ser “a mais difícil”. “É quando ainda se sentem mais sozinhos, escurece mais cedo, o tempo não está em condições para darem uma voltinha”. Por isso, a secção, que integra ainda um terceiro elemento, o cabo chefe Pedro Jacinto, agora de férias, faz o esforço de tentar visitar o maior número de idosos “na véspera e no dia de Natal”, para lhes levar “algum conforto”.
O próximo monte a visitar, localizado na mesma freguesia, fica a 11 quilómetros. Mais caminho em terra batida, algumas curvas e o vento que teima em não dar tréguas. Assim que ouve a buzina do pequeno híbrido da GNR, Julieta Silveira, de 83 anos, espreita pelo postigo e cumprimenta os militares. É notório, no entanto, o seu desconforto ao aperceber-se da presença do “Diário do Alentejo”. Conta que já foi entrevistada para um canal de televisão, mas com a condição de a sua morada não ser revelada. Garantimos que também não será. “Se algum dia me aparece aqui um assaltante, a GNR não está cá [para ajudar]. Não sou medrosa, mas ouço contar sobre os assaltos e às vezes até me pode calhar a mim. As coisas não acontecem só aos outros”, justifica.“A dona Julieta tem noção dos perigos de estar sozinha e por isso tem sempre algum cuidado”, acrescenta a cabo Ramos.
Julieta, que dedicou parte da sua vida à agricultura e à criação de gabo bovino em conjunto com o marido, vive só há perto de uma década, desde que enviuvou. E há pouco mais de meia dúzia de meses passou a ser a única residente, em permanência, no pequeno monte, depois de a vizinha Lucília se ter mudado para um lugar não muito distante, “também isolado, mas com mais gente”. “Agora sou a mais velha e a mais nova”, diz, já mais descontraída. Apesar das insistências da filha, que vive em Faro, recusa-se a abandonar “as coisas” que arranjou “com tanto sacrifício”.
“Nunca pus a hipótese de sair daqui. Enquanto eu puder não abandono a minha casa. Agora abandono tudo e vou-me embora porque tenho medo? Eu não tenho medo”, afirma, perentória.
A recente abertura de um turismo rural a escassos metros de sua casa sempre trouxe algum movimento ao monte, principalmente, no verão, reconhece. Os donos do empreendimento também vão aparecendo com regularidade. O inverno que se avizinha será o período mais complicado, admite a idosa. “Mas praticamente todos os dias vêm aí pessoas [ao turismo rural]. Vem a empregada da limpeza, vem o jardineiro, vêm os pedreiros que andam quase sempre aí a trabalhar”. O apoio domiciliário da Misericórdia de Mértola também entrega o almoço diariamente, com exceção do domingo, e a mercearia ambulante passa todas as semanas. Julieta beneficia ainda do “Mértola Voz Amiga”, programa de teleassistência da câmara destinado a idosos que se encontrem em situação de grande isolamento social e geográfico, mas, até ao momento, “nunca foi preciso”. Os funcionários da autarquia é que lhe ligam, amiúde, “a perguntar se está tudo bem, se o aparelho está a funcionar”. E quando se sente mais só telefona à filha ou a “pessoas amigas”, com quem fica a falar, às vezes, “meia hora, ou mais até, da vida, a relembrar as coisas que passaram”.
“Não há perspetivas de nada”
Nascida e criada no monte, Julieta recorda-se bem dos tempos em que as casas do monte, perto de uma dúzia,“estavam todas ocupadas”. E da quantidade de gente, “incalculável”, que havia quando “andava à escola” na aldeia mais próxima. Depois, quando andou “à costura, já havia menos pessoas, e, agora, então, não se fala”. “É triste os montes perderem pessoas. Antigamente havia tanta gente e agora não há quase ninguém, nem mesmo na aldeia, que é uma aldeia ainda grande. Ainda no outro dia quando fui com a minha filha ao cemitério corremos a aldeia toda e não vimos uma única pessoa na rua”, lamenta. Um problema que diz não ter solução à vista. “Não há perspetivas de nada.Vão-se os novos, ficam os velhos e depois os velhos morrem e acaba tudo. Há tantos montes aí acabados… Aqui não há fábricas, não há nada, acho que não há volta a dar. Aqui, neste sítio, não é mais do que isto”.
A cabo Ramos acrescenta: “A população vai estando cada vez mais envelhecida e a continuar a ficar isolada porque as pessoas insistem em ficar nas suas casas, não querem sair do seu canto. Felizmente, ainda temos muitos filhos que se preocupam e tentam vir dar uma ajuda e às vezes até ligam para nós quando não conseguem falar com eles. Mas também temos casos de idosos cujos filhos, simplesmente, não querem saber dos pais”.
A conversa é interrompida pela chegada da carrinha do apoio domiciliário com o almoço – sopa e migas com carne de porco –, já passa do meio-dia e meia. “É pena que o pão já não seja como o de antigamente”, lamenta Julieta, enquanto vai trocando algumas palavras com a funcionária da Santa Casa da Misericórdia de Serpa.
“Tentamos sempre que os idosos recorram ao apoio domiciliário, porque já têm muita dificuldade em cozinhar, em fazer a sua higiene, em lavar a roupa” e “é uma garantia de que comem e têm uma alimentação equilibrada”, sublinha a militar. Até não é o caso “da dona Julieta, que é desenrascada”, adianta, mas como necessitava de transporte da Santa Casa para se descolar às consultas a Mértola, e “tinha de escolher, no mínimo dois serviços”, acabou por optar também pela alimentação. Tudo o resto faz sozinha.
O trabalho de sinalização de idosos a viverem nos três concelhos é feito sempre em articulação com “as juntas de freguesia e com as câmaras municipais”, porque “a área é extensa” e as autarquias, “melhor do que a secção, conhecem os idosos”, lembra ainda a cabo Ramos.“A área é muito grande, são três concelhos e só há uma patrulha nesta especialidade”, sublinha, por sua vez, o comandante do destacamento da GNR de Almodôvar, alferes David Relvas, que, nesse dia, acompanha os cabos Ramos e Lopes na ação de patrulhamento. O responsável reforça que a operação “Censos Sénior” permite atualizar os dados, sinalizando novos idosos ou mudanças de condição, quer pelo agravamento, quer pelo melhoramento das situações já identificadas. E conclui, dizendo que a “principal função” do destacamento “é trabalhar para que não haja idosos”, na sua área de abrangência, “que não estejam sinalizados”, e “daí, também, a grande importância da ‘operação sénior’ para tentar colmatar ao máximo algum tipo de falha que possa existir”.