Mais de duas dezenas de cidades do País foram palco, no passado sábado, de protestos pelo direito à habitação, juntando, em simultâneo, milhares de participantes. Entre as várias medidas urgentes a serem tomadas, os manifestantes exigiram a revogação da lei dos despejos, o aumento da oferta pública de habitação e a garantia que nenhuma família pague, de prestação do crédito à habitação, mais do que 35 por cento dos seus rendimentos líquidos. Em Beja, o encontro reivindicativo teve lugar no Jardim do Bacalhau, onde estiveram presentes algumas dezenas de pessoas.
TEXTO JOSÉ SERRANO
Classificando a situação da habitação, no País, como “insustentável e de um impacto profundo na vida social coletiva e de dimensões catastróficas na vida pessoal de cada um”, o movimento Porta a Porta organizou um conjunto de manifestações, no passado sábado, dia 30 de setembro, em 24 cidades nacionais.
Exigindo que o Governo tome medidas urgentes para solucionar as dificuldades existentes no acesso ao arrendamento, o movimento defende a “renovação obrigatória dos atuais contratos de arrendamento, o congelamento de aumentos das rendas durante 2024, o tabelamento do arrendamento urbano, a revogação da lei dos despejos, o aumento da oferta pública de habitação”. No que diz respeito à aquisição de casa para habitação própria e permanente, é defendido que se garanta que “nenhuma família pague mais do que 35 por cento dos seus rendimentos líquidos mensais de prestação bancária do crédito à habitação” e que se proíba “a penhora da morada de família”.
Em Beja, a tribuna pública ocorreu no Jardim do Bacalhau, onde algumas dezenas de manifestantes entoaram frases de ordem, como “queremos casa, queremos pão e o direito à habitação” ou “estamos fartos de escolher, pagar a renda ou comer”, e empunharam cartazes onde se podia ler “salários de tostões, rendas de milhões” ou “baixem a prestação, subam o salário”.
Inês Vasques, do Porta a Porta, em Beja, considerou que os “muitos problemas relativos à habitação, que estão em cima da mesa, não estão a ser solucionados pelo Governo” e que o movimento não consegue aceitar “que uma pessoa arrende uma casa que lhe custa quase mais do que o seu próprio salário”, que pessoas reformadas estejam “a ser despejadas das casas onde viveram uma vida inteira”, que os jovens se encontrem “a adiar a sua autonomia por falta de uma habitação” e que, “todos os dias, famílias percam as suas casas para os bancos ou sejam despejadas pelos senhorios”, incapazes de conseguir “pagar as prestações do crédito ou o valor das rendas”.
Inês Vasques, sublinhando as adversidades habitacionais pelas quais muitos dos cidadãos portugueses estão a passar – “com os ordenados que estão a ser praticados e as reformas miseras atribuídas” –, evidencia a incoerência social que regista, considerando que “tudo isto está a acontecer, enquanto a banca e os fundos imobiliários continuam a somar lucros históricos”. Por isso, diz, o movimento de cidadãos, que “não está ligado a nenhum partido”, exige uma série de medidas políticas a serem tomadas, como a adequação da prestação do crédito à habitação, “de forma a garantir que nenhuma família pague, por tal, mais de 35 por cento dos seus rendimentos mensais”, ou o aumento da construção pública e social e do alojamento estudantil. “Nós lutamos para que estas reivindicações sejam ouvidas. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a desenvolver ações. Não podemos permitir que as pessoas percam as suas casas. Não podemos permitir que as pessoas tenham de ir viver em tendas, para parques de campismo. É inaceitável”.
As reivindicações na primeira pessoa
O “Diário do Alentejo” conversou com três dos manifestantes presentes em Beja, que expuseram as suas dificuldades, com os salários que auferem, em pagar a prestação do crédito à habitação e a renda da casa, mensais. Fixar tetos máximos, de acordo com a taxa de esforço de cada um, alicerçar uma, “totalmente ausente”, política de habitação e reivindicar, de forma mais austera, na rua, medidas políticas capazes de inverter a precariedade sentida, são algumas das sugestões para tentar solucionar o problema habitacional, que grande parte dos cidadãos portugueses está, arduamente, a experienciar.
Rute Freitas, 52 anos, professora“A prestação da minha casa, pela subida de juros da Euribor, aumentou de 280 para 465 euros (excluindo os seguros), e tenho, neste momento, dois filhos a estudar em Lisboa. Se se calcula uma taxa de esforço máxima, quando pedimos um crédito à habitação ao banco, então tem de se ter em conta essa fórmula. Para não se ultrapassar esse patamar, que, no meu caso, já foi, nitidamente, transposto. Se era um terço do nosso rendimento, então a lógica devia manter-se. Para quê calcular essa taxa se depois as casas continuam, constantemente (porque isto ainda não parou), a aumentar? Devia fixar-se um limite. A estas despesas com a habitação, extremamente pesadas, acresce o facto de, sendo eu professora há 28 anos, ainda não me encontrar em situação profissional estável. Neste ano estou a lecionar em Castro Verde, para o ano não sei onde irei ficar colocada. Posso ficar entre Barrancos, Odemira, Portel e Ourique e claro que isto me preocupa. Porque ainda posso vir a ter de pagar mais um quarto ou uma casa para poder dar aulas. Esta minha precariedade económica, com o que tenho de pagar de habitação, é reforçada com os preços dos bens de primeira necessidade, da alimentação. Veja-se o caso do azeite, que aumentou de forma colossal, praticamente, para o dobro. Eu sei que há escassez, mas, ainda assim, devia estipular-se um montante máximo, como já aconteceu com o pão e o leite, em outras ocasiões. Com os ordenados que temos, na função pública, ainda tenho de recorrer, muitas vezes, de uma forma triste, com esta idade, ao apoio da minha mãe. A palavra que espelha esta situação é ‘sobreviver’. E é lamentável”.
João Barreira, 41 anos, arqueólogo“A questão da habitação é uma questão nacional. Focamo-nos, quase sempre, em Lisboa e no Porto, mas Beja tem também esses problemas. Eu vivo esses problemas. Estou cá, na cidade, desde 2019 e sempre tive muita dificuldade em arranjar habitação. Neste momento estou a viver num T1, com a minha companheira (que se encontra desempregada) e a sua filha. Pago 400 euros por mês, o que equivale a cerca de 40 por cento do meu rendimento. A casa é pequena para nós os três e estou a tentar arranjar uma outra com mais espaço. Mas ainda na semana passada me pediram 550 euros por um T2, e eu não tenho condições para pagar essa quantia, que considero excessiva. Uma renda que não se justifica, porque, em Beja, o que mais vemos, especialmente, no centro histórico, são edifícios fechados, edifícios degradados, edifícios que podiam ser a habitação de muitas famílias e contribuir, também, para atrair à cidade gente nova. O que se sente em Beja, o que se sente por todo o País, é a ausência total de uma política de habitação. Parece que foi preciso esperar que isto chegasse a este ponto de rutura para começarmos a pensar nestas questões. Obviamente, isto não se vai resolver num ano ou em dois, se calhar nem em 10. Mas é preciso, de uma vez por todas, ter uma bolsa de habitação pública, que sirva as pessoas. Será a única forma de controlar as rendas nas cidades. E, num primeiro momento, devem existir apoios às famílias, a quem precisa de ajuda para pagar uma renda, para poder ter uma habitação com dignidade”.
Catarina Penacho, 30 anos, engenheira de qualidade de software“Sou de Beja, mas moro em Lisboa. Lá, encontrei um T1, por acaso, com uma renda mais baixa do que o é habitual, porque dificilmente se encontra, nesta tipologia, um preço inferior a 1000 euros. Ainda assim, estou a pagar 750 euros mensais, o que corresponde a dar mais de metade do meu ordenado para a habitação. Contudo, a minha ida para esta casa, porque eu queria morar sozinha, foi feita de forma muito rápida, a lista de espera era muito grande e eu fui, um bocadinho, obrigada a aceitar esta renda. Confesso que não fiz muito bem as contas para saber se conseguia suportar este peso todos os meses. Vou agora tentar candidatar-me ao Porta 65 [programa do Governo destinado a arrendatários, entre os 18 e os 35 anos, que permite receberem, durante algum tempo, uma comparticipação no pagamento da renda], para ver se consigo aliviar, um pouco que seja, estes custos. Por acaso, neste fim de semana, vim a Beja e não podia deixar de estar aqui, a manifestar-me. Com passividade não vamos lá. Infelizmente, julgo que temos de ser um pouco mais agressivos a mostrar o nosso descontentamento. Temos todos de sair à rua para o demonstrar, porque as coisas continuam a piorar, ano após ano. Só quando o País parar é que vai ser feita alguma mudança a este respeito. Os problemas inerentes à habitação podem ser solucionados. A solução passa pela vontade política, que, obviamente, não existe. Tem que haver ‘um abre olhos’”.