Diário do Alentejo

A grande afeleação!

25 de setembro 2023 - 09:00
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto | José d’Encarnação | Arqueólogo

 

Noticiou o jornal “O Bejense”, na sua edição n.º 1822, de 7 de dezembro de 1895: “No Largo de Santa Maria, terça-feira, ao continuar-se- na escavação para a construção do cano de esgoto do Mercado, encontrou-se o seguinte mármore, que foi recolhido no Museu da Câmara:

LE…LEG…GENE…TIVM…GERM….MIL…CO…MARIVS…LIB.ET…PATRONO…”

Apresentou-se esta leitura, que corresponderia, portanto, às letras visíveis e logo esta disposição do texto dá a entender que dele apenas nos resta a parte esquerda. Ao elaborar o inventário do museu de que era conservador, Joaquim de Vargas indica que a pedra foi encontrada “na parede do convento da Conceição”.

Mais uma pedra romana reaproveitada, portanto, noutra construção da cidade. E, como inteira não dava jeito, ao meio se houve por bem partir. Será que a outra metade ainda estará por i, metida também ela nalguma parede? Oxalá! E que, um dia, se encontre – para acabar com a grande afeleação dos investigadores.

É que, já em 1946, Abel Viana, lamentando-se (“Pena é este curioso cipo achar-se partido”, depois de dizer que os OO da palavra PATRONO “são perfeitamente circulares e muito pequeninos”), observara: “Os caracteres são muito bem gravados, dentro da moldura saliente. As inclusões, no princípio de quase todas as linhas, dão à inscrição um belo aspecto”.

O facto de, na face lateral esquerda, haver “um resto de patera, em relevo”, para usarmos ainda a descrição de Abel Viana, indica que estamos perante uma inscrição funerária, porque esse prato, a que corresponderia, na outra face lateral, um jarro, constituem ambos elementos próprios de monumento a colocar na sepultura: representam os utensílios usados para ungir o cadáver antes de ser cremado ou sepultado e, por conseguinte, a vontade dos familiares de perenemente perfumarem o corpo da pessoa que lhes foi querida.

Temos uma ideia da pessoa de quem partiu a iniciativa da preparação desta memória: foi Mário, de quem desconhecemos o cognome mas o que resta na linha 9 – LIB ET I – é deveras elucidativo. LIB é a abreviatura de libertus; e o traço vertical subsistente será, seguramente, a primeira perna de um H. HER(es), herdeiro, poderá ser, mui verosimilmente, o que ali teria estado escrito.

Não era incomum um senhor libertar o escravo que, ao longo da vida, tão dedicado lhe fora e constituí-lo seu herdeiro, amiudadas vezes com a condição de o liberto lhe mandar gravar o epitáfio. Uma forma de recompensa mas também um meio engenhoso de garantir a perpetuidade da sua memória e do seu nome, caso não houvesse – como aqui houve – pedreiros desajeitados e ignorantes, que tudo deitaram a perder! Por conseguinte, não lhe conhecemos o nome, que encabeçaria a inscrição e se perdeu; sabemos, porém, que foi o protetor (patronus) de Mário e o nomeou seu herdeiro. Não nos admiraria, pois, se, a seguir, a “patrono” viesse o elogio: “optimo”!

Uma carreira militar O que mais afeleia o investigador é que, tendo em conta o que poderia ter estado escrito nas primeiras sete linhas, agora reduzidas a menos de metade, não lhe ser possível, com tão poucos elementos, aventar uma tentativa mais ou menos verosímil.

Veio em nosso auxílio o saber militar do Doutor Patrick Le Roux, autor da melhor síntese até agora publicada, em 1982, sobre o papel do exército romanas na organização das províncias ibéricas. Assim, nas duas primeiras linhas atuais, lê-se LEG: LEG(ionis), da legião. Estaria, nessas linhas, a informação de qual o número da legião em que o defunto militara. Como, na actual linha 3, se lê GENI, será o epíteto de uma legião – PRIMIGENIAE –, o que se coadunaria, por exemplo, com a Legião XXII, que tal nome chegou a ter.

No começo da linha 4, lê-se bem TIVM. Porventura seria a terminação de COHORTIVM, ‘das coortes’. Quem presidia à coorte era o prefeito, palavra que estaria, portanto, na linha anterior. Por seu turno, na linha 5, GERM outra coisa não poderia ser senão GERMANICA, palavra que amiúde surgia em textos militares, a identificar a província oriental do Império, mais ou menos equivalente ao actual território da Alemanha (por isso aos Alemães de vez em quando se chama Germânicos). Ou seja, uma das legiões em que o nosso herói prestou serviço chamava-se Germânica, por aí se haver notabilizado. MIL, na 7ª linha, seduz-nos a reconstituir MIL(itavit), “militou”, mas com ponto de interrogação.

Sedutora é também a linha 8 e quanto não daríamos para a ter mais completa!... É que, se aí se ler, como parece, um C com um ‘òzinho’ dentro, não pode deixar de ser o início da palavra COLONIA, que é o nome da Beja romana: “colonia Pax Iulia”. Ora, como o dedicante é o liberto Mário (e Mário seria também o nome do seu senhor), aí viria expressa a ligação entre o militar e a cidade. Será que ele aí exerceu algum cargo?

Muitas perguntas, portanto. Uma certeza, porém: este fragmento de mármore de Trigaches, com 80 x 35 x 23 cm, está triste por assim o haverem amputado e não poder contar por completo a história que nele se gravou!...

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